Foi, realmente, um momento esplendoroso, «um desses milagres que alteram a mentalidade das pessoas», que possibilitou no curto espaço de um ano que se passasse do amargo ceticismo português - que é dizer mal de tudo e não acreditar em nada -, para a euforia de tudo se cometer. De repente, há um turbilhão chamado «rock português». Um movimento com uma energia imparável. Surgem os UHF, os Xutos & Pontapés, os Táxi, os Jafumega e muitos, muitos outros
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
passavam-lhe os azeites e trancava-se no quarto a chorar
- A minha maior asneira foi o casamento contigo
o meu pai umas palmadinhas amigas
- Apesar de tudo não temos sido infelizes
e se calhar não eram ou eram mas não mais que os restantes, quem é feliz neste mundo, falta sempre algo não é, saúde, dinheiro, mas a vida continua a tropeçar mais ou menos pelos dias fora, empenada e contudo girando, o meu pai para a minha mãe
- Dá cá uma beijoca
ela apesar de sobrazinhas de ciúme a estender a bochecha, nessa noite o crucifixo umas pancadas curtas mas pancadas mesmo assim e ambos melhor a seguir, o meu pai para a minha mãe
- Atrevidota
e a minha mãe corada a apontar-me o nariz e todavia no fundo contente, não muito no fundo, via-se cá de cima, eu para eles
- Namoram outra vez
António Lobo Antunes – Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera (2016) Publicações D. Quixote | Leya (2016)
Então, quando essas palavras são publicadas, o segredo é libertado no mundo: mistura-se com o olhar dos outros. Por consequência, muda a forma como os outros veem e, também, a forma como os outros nos veem.
Foi justamente nos olhares dos outros que encontrei as primeiras questões. Ainda sem terem lido uma página, quando se mencionava o tema "Fátima", todas as perguntas eram formas explícitas ou subliminares de me colocarem uma única pergunta: acredita?
(...)
Em nenhuma ocasião respondi sim ou não. Por um lado, não creio que a resposta a essa pergunta seja apenas sim ou apenas não, a não ser que se simplifiquem as questões até ao seu elemento mais básico, tão básico que já não é sequer representativo do que se está a falar. Por outro lado, porque a minha intenção primeira, uma das que me levou à escrita do livro, foi justamente encontrar uma maneira de falar de Fátima que não passasse por esse separar de águas, esse muro divisor: acredita/não acredita.
Nem todas as pessoas que afirmam acreditar em algo comum o fazem da mesma forma. Acreditar não é preto e branco. Também me parece que nem todas as pessoas são cépticas da mesma forma. Há inúmeras gradações e particularidades no que toca à crença e/ou à fé. Não existe um interruptor para a fé ou o cepticismo.
(...)
Fátima é um tema multidimensional. Ao longo destes cem anos, assumiu uma enorme importância política e social. Em grande medida, pode dizer-se que houve uma certa sensibilidade acerca deste tema que foi paralela às próprias alterações políticas e sociais do país. Por tudo o que dizem sobre nós, essas são questões de grande interesse, que merecem ser levantadas, observadas e reflectidas.
Já no que toca à sua dimensão religiosa, Fátima é um assunto que está na esfera da sensibilidade íntima de cada um. A liberdade religiosa é uma conquista civilizacional. Não devemos estar dispostos a abdicar dela em nenhuma circunstância.
Nesse sentido, é fundamental que crentes e cépticos se saibam respeitar entre si, só assim poderá existir um diálogo edificante. Não vejo razões para duvidar que uns possam aprender algo com os outros. Se não estivermos de ouvidos fechados, de olhos fechados, podemos sempre aprender algo com os outros, podemos sempre descobrir algo novo. E os outros, claro, não são uma abstração. Os outros são aqueles que têm opiniões realmente diferentes das nossas.