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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

L'alma dell'alma mia

04.07.19

o único meio de sacudir tragédias e enfrentar desgraças é encará-las de frente e de coração ao alto. E, virando-se para o defunto no retrato, arranca a confirmação: Sabes bem, ó Sarmento, que sempre fui mulher de honra e de coragem! Se Deus te tragou nas ondas do mar, foi porque achou ser eu capaz de governar-me sozinha! 

 

Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

 

o sol, o pão, o ouro, a Terra e o coração

03.05.18

Deus não é uma entidade separada de nós (...) Ele é o sol, e o pão, e o céu e o ouro do cálice, e as forças da natureza e a Terra, e o coração do homem. Habita em nós e à nossa volta; nós estamos dentro dele, e nunca fora. Espírito universal, revela-se em todo o lado através dos véus opacos e cerrados da matéria, e a nossa alma é um santuário que ele inunda com a sua essência (...) Procure-mo-lo, pois, dentro de nós: quanto mais assim o procurarmos, mais aprenderemos a encontrá-lo, mais transparente será o véu e mais abrasador o clarão misterioso 

 

 

George Sand – Diário Íntimo

Antígona (2004)

 

 

 

 

 

Alexandra Alpha

26.10.16

José Augusto Neves Cardoso Pires

( 2 de Outubro, 1925 —  26 de Outubro, 1998)

 

" Se o cabo mecânico, às 08.00 da manhã, estivesse no hangar como lhe determinava a escala, por certo tería caído das nuvens ao ver chegar o engenheiro Miguel que horas antes teria passado por ele encoberto com as brumas. Veria que não trazia luvas nem saco plástico nenhum e que vinha acompanhado de duas senhoras. E acharia estranho, evidentemente. E indagaria. E talvez tivesse evitado o pior. Mas sempre que toca a desgraça o Diabo sabe tecer os enredos com agulha fina e Deus faz de distraído ou como se. E o facto é que, minutos antes de o engenheiro entrar no hangar, o cabo fora chamado ao gabinete de controle por motivos de serviço e foi um assistente de pista que o recebeu e ajudou a atrelar o cartaz ao aparelho.

Chamado agora a perguntas, o referido substituto pouco podia esclarecer. Desde o hangar até ao momento da descolagem também notou que havia certa ausência entre as duas senhoras, diria mesmo que certa animosidade. Teve consciência disso mas, era como o outro, os humores de cada um não lhe interessavam nem deixavam de interessar. Tudo o que podia assegurar é que estavam as duas muito silenciosas naquela manhã prateada ao tomarem os seus lugares para a sua última viagem: Alexandra à frente ao lado dos comandos, Maria no assento da retaguarda, com o pescoço por cima do ombro dela para ver melhor a paisagem.

 

Sobrevoaram em asa de brinquedo rectângulos verdes, campanários, comboios alegres em trilhos reluzentes. Traziam no rastro uma mensagem a singrar no azul e levavam por companhia um coração assassino que não parava de pulsar: tiquetaque, tiquetaque, tiquetaque...

Por um destes pressentimentos que só a morte sabe despertar, Maria procurou a mão de Alexandra e apertou-a com força. "

 

 

José Cardoso Pires - Alexandra Alpha (1987)

Publicações Dom Quixote para Círculo de Leitores (2003)