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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

cherchez

13.12.24

O Porto tinha uma condescendência especial para as mulheres infiéis, se elas eram inteligentes bastante para não preferirem o amante aos deveres da sociedade. Não se discutiam os gostos, logo que não se cometessem erros com eles. E era um erro enternecer-se por um destino quando se tratava apenas de amar um homem, coisa breve e sem muito de herético. A bela Raquel, de resto, tinha uma só paixão: amassar uma fortuna sólida e administrar os rendimentos. A maneira como discutia com os seus rendeiros ou fazia as contas duma obra de alvenaria, arrefecia o coração mais arrojado. A verdade é que por toda a parte lhe facilitavam as coisas: escrituras, compras de terrenos, negócios inumeráveis. Os homens da edilidade e do fisco, administradores e juízes estavam prontos a ajudá-la, porque era mais inofensivo conceder-lhe favores com a corrupção do que sentimentos com consequências. A sua vida estava tão ocupada por toda a sorte de batalhas financeiras, e pelo jogo, que não lhe ficaria tempo para o amor se ele fosse outra coisa para Raquel senão um acessório da toilette. Usava os amantes a condizer com o vestido, e Deus sabe quantos vestidos de passeio e de visita ela encomendava todas as estações. Ela não tinha qualquer domínio sobre José Augusto; mas era por isso mais perniciosa do que certas mulheres que causam devastação no carácter dos homens; porque não a receava, José Augusto atribuía-lhe direitos que iam até confiar-lhe os segredos mais preciosos.

 

Agustina Bessa-Luís – Fanny Owen (1979)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

 

 

visto interesse(s) nacional/(ais)

02.08.23

Dos cerca de 40 mil trabalhadores nas limpezas industriais, mais de metade não são portugueses. O STAD fala em cerca de 25 mil trabalhadores estrangeiros, ou cujos pais não nasceram em Portugal.[...]

A mão de obra estrangeira começa a aparecer quando os salários baixam para o mínimo possível. «Ganhava-se muito bem na limpeza. Nos anos 90, o setor da limpeza era onde mais se ganhava. Eu, por exemplo, cheguei a ganhar acima do salário mínimo cerca de 150 euros. Nos anos 90 era muito dinheiro. Depois, quando o salário começou a baixar, com ordenado mínimo, com direitos a serem reduzidos, claro que deixou de haver tanta oferta. Onde é que eles foram buscar? A quem precisava mesmo»

 

Rita Pereira Carvalho – As Invisíveis, Histórias sobre o trabalho de limpeza (2022)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Rita Pereira Carvalho (2022)

 

 

Ai Ciro, Ciro [ ou quando o povo gosta de brincar ao ping-pong]

30.05.23

Não invejo um homem que não se define, nem na consciência, nem na experiência. 

 

Agustina Bessa-Luís – Fanny Owen (1979)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

mais muros e menos grandes homens

03.04.23

No Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa, pelas quatro horas da tarde do sábado 3 de abril de 1954, morreu Aristides de Sousa Mendes. O seu corpo foi envolto no hábito de S. Francisco. Disse-me meu pai: "O tio Aristides foi um grande homem."

 

António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto
Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)

 

 

 

característica central apaparicada (não esquecida)

27.09.22

Ah, mas isto não é bem fascismo, dirão os mais fascinados. Ok, ignoremos então em Meloni o ídolo Mussolini, os familiares de Mussolini, as ideias copiadas a Mussolini, os cachecóis com o lema "Deus Pátria e Família". Usemos o guia prático com 14 características comuns da ideologia criado pelo escritor Umberto Eco, e vejamos se elas se aplicam.

O culto da tradição e a rejeição da modernidade. A acção em vez da ponderação. O esmagar do espírito crítico, porque pensar pela própria cabeça é trair. O medo da diferença. O aproveitamento dos ressentimentos sociais. A obsessão pelas teorias da conspiração. Descrever o inimigo, simultaneamente, como muito forte e muito fraco. Desprezo pelos que estão na mó de baixo. Desprezo pelo pacifismo, que também é traição. A obsessão pelo heroísmo e o culto da morte. O machismo e culto das armas. Populismo elitista, em que a resposta emocional de uns poucos é difundida como a Voz do Povo. E finalmente o uso de uma comunicação simplificada, de vocabulário estridente e empobrecido, para limitar o uso da razão [...]

Aqueles que sim conhecem a História sabem como termina este filme que começa com pompa e arrogância: em desastre. Veremos então quem será o bode expiatório, porque se há uma característica central do fascismo que Umberto Eco esqueceu, é a divisão permanente da sociedade em Nós e Eles – em que Eles são os causadores de todos os males que nos afligem. Desta vez, os maiores candidatos a "eles" são os migrantes e a Europa. 

Hugo Guedesin https://www.wort.lu/pt/mundo/reviver-o-passado-em-roma-6332d1c2de135b92365616fa

 

 

r€fugiados, solidari€dad€, irmandad€, frat€rnidad€, €€€€,

08.06.22

Não me trate como uma ignorante. Pode-se ser inocente sem se ser ignorante.

 

Agustina Bessa-Luís – Fanny Owen (1979)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

saudades das vibes

21.04.22

Imagine que é convidado a responder à seguinte pergunta: «Em que medida considera que as pessoas negras e as pessoas brancas em Portugal são muito diferentes, diferentes, semelhantes ou muito semelhantes no que se refere aos valores que ensinam aos filhos?» Imagine que seguidamente teria de responder à mesma questão, agora relativamente ao grau de preocupação que brancos e negros têm com o bem-estar das famílias, a religião, a educação das crianças, os comportamentos sexuais, etc. Esta questão foi objeto de estudo numa pesquisa, já citada, realizada nos anos 90, no quadro do Eurobarómetro. Os resultados mostraram que, quanto mais os respondentes acentuavam as diferenças culturais entre os cidadãos dos países inquiridos e os imigrantes de países não-europeus, considerando-os culturalmente muito diferentes, mais manifestavam racismo biológico e mais consideravam que os imigrantes - por exemplo, pessoas negras no caso de Portugal - eram incapazes de se adaptar à sociedade de acolhimento [...] à primeira vista acentuar ou exagerar as diferenças culturais não pareceria estar relacionado com racismo tradicional e discriminação. Contudo, os resultados são claros e têm mostrado consistência ao longo de 30 anos de pesquisa. A preocupação de Lévi-Strauss tinha razão de ser: a associação subtil entre diferença e inferioridade é prova disso.

 

Jorge Vala  – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

 

cassetes [que funcionavam]

22.03.22

Em meados dos anos de 1990, quando era estudante e frequentava en passant as já referidas cadeiras de Marketing, costumava arriscar uma imitação tosca das intervenções sibilantes de Carlos Carvalhas, então secretário-geral do Partido Comunista Português, martelando as mesmas teclas que o Comité Central gostava de tocar à época: «O Governo destruiu o aparelho produtivo nacional, sacrificou a nossa agricultura, as nossas pescas e os mais importantes sectores industriais, tudo isto num cenário de dificuldades para os portugueses; eis-nos então perante um ministro das Finanças feito mestre-escola comunitário, a quem cabe distribuir o cacete, reservando a cenoura para o primeiro-ministro». Em suma, os critérios de Maastricht e as decisões políticas condenaram-nos a ser um país servil, de empregados de mesa, com um paninho de loiça pendurado no braço [...] (já a referência explícita ao cacete está documentada nas actas da Assembleia da República de 13 de Fevereiro de 1992), mas, enfim, percebe-se a ideia. Nessa altura, o país dava mesmo os primeiros passos em direcção a uma terciarização acelerada. 

 

Pedro Vieira – Em que posso ser útil? (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pedro Vieira (2021)

 

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