Vamos passear junto ao rio na mais completa solidão. Está quase na hora de deitar. As pessoas já foram para casa. É bastante reconfortante observar as luzes apagarem-se nos quartos dos pequenos comerciantes que vivem do outro lado do rio. Ali está uma, ali outra. Quais terão sido os lucros por eles hoje obtidos? Apenas o suficiente para pagar a renda, a electricidade, a comida e a roupa dos filhos. Mas apenas o suficiente. Como é grande a sensação de que a vida é tolerável que nos é dada pelas luzes dos quartos dos pequenos lojistas! Quando chega o sábado, o mais provável é terem apenas dinheiro para pagar quatro entradas de cinema. Talvez que antes de apagarem as luzes se dirijam até ao pequeno jardim que possuem para olhar o coelho gigante que se encontra dentro da capoeira de madeira. Trata-se do coelho que comerão ao jantar de sábado. Depois apagam as luzes. Depois adormecem. E, para milhares de pessoas, dormir não passa de algo quente e silencioso, de um prazer momentâneo composto por um qualquer sonho fantástico. «Enviei a carta para o jornal de domingo», pensa o merceeiro. «Suponhamos que ganho quinhentas libras no jogo de futebol. E, claro, mataremos o coelho. A vida é agradável. A vida é boa. Enviei a carta. Vamos matar o coelho.» Só então adormece.
[...] Ouço um som semelhante ao deslizar de vagões nos carris. Trata-se da ligação feliz que existe entre os acontecimentos que se sucedem na vida de cada um. Toque, toque, toque. Dever, dever, dever. Deve-se partir, deve-se dormir, deve-se levantar - trata-se daquela palavra sóbria e piedosa que pretendemos insultar, que apertamos com força contra o coração, e sem a qual não existiríamos. Como adoramos o som dos vagões que vão batendo uns contra os outros ao deslizar nos carris!»
Virginia Woolf – As Ondas (1931)
Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)
Entretanto, ninguém parecia entender o que o António queria e eu pedi: deixem-me ficar sozinho com ele, vão tomar um café. Ele queria fazer uma versão do «Povo Que Lavas no Rio», o que era muito corajoso. Pegar numa coisa da Amália, já é corajoso, mas logo aquela! Eu pergunto-lhe, António, queres que isto soe como? E ele diz aquela frase emblemática:
«Entre Nova Iorque e a Sé de Braga.»
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
- Falando por mim, só começo a gostar do Variações através da sucessiva passagem das maquetes que tínhamos feito com ele. Só começo a gostar, quando se cria uma familiaridade com aquele som e com aquele timbre. Porque a primeira reação é...overdose. Depois, e se há uma palavra que pode definir bem o Variações é uniqueness. Isto é, há uma singularidade nele que acaba por conquistar inevitavelmente o seu terreno, e acaba por conquistar as pessoas. Como conquistou - diz Rui Pêgo.
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
Certa vez, o avô Jorge cortou a ponta do dedo com a tesoura da poda. Nesse caso, o grito foi curto e grave. Como se o som quisesse sair e ele o metesse para dentro. Lutava não apenas com o sangue que jorrava como de uma mangueira, mas com o próprio grito. E logo de seguida, com um lenço apertado no dedo, o avô conseguiu dominá-lo. Tinha sido uma questão de segundos. Um desleixo. Uma coisa a não repetir.
[...]
Aquele grito existiu, não era possível voltar atrás, mas foi remetido para a escuridão no mesmo momento em que foi produzido. A escuridão das coisas de que não é permitido falar. As coisas íntimas. As coisas que se querem só para nós.
Os gritos da mãe eram outra coisa. Eram gritos virados para fora. Queriam dizer que existiam. Viajar para longe. Perdurar no tempo e na distância. Era como se fizessem questão de permanecer dentro dela e ela os quisesse expulsar. Como se, de boca aberta, procurasse projectar o som o mais longe que podia.
E a isto, percebi depois, as pessoas chamavam desabafar.
- Deita tudo cá para fora - ouvi o resto do dia.
Isso queria dizer que o avô tinha procurado abafar a sua dor, comê-la. Por outro lado, a mãe fazia todos os possíveis para desabafar a sua dor, vomitá-la. Isto era compreensível. À partida, só conseguíamos manter uma dor dentro de nós se ela lá coubesse. E tendo em conta o que ouvi durante esses dias, era natural que a dor da mãe fosse muito maior do que a do avô.
a luz da cozinha, os tubos fluorescentes de fabricar cegos quase a chegarem aqui juntamente com ruídos de gavetas, talheres, a porta do frigorífico numa espécie de sucção, um prato a bater nos outros ao ser tirado da pilha, uma voz nos antípodas
- Queres ovos mexidos?
os cliques do forno que não acende, acende, se apaga, acende de novo e o assobiozinho do gás, uma torneira aberta, uma torneira fechada, qualquer coisa que se parte
(acho que um pires)
o som de porta de armário e de objectos remexidos à procura do vasculho e da pá, do sapato a carregar na patilha do balde cromado onde se despejam cacos,
António Lobo Antunes – A Última Porta Antes da Noite (2018)