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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

about time (II reprise de agosto)

26.08.19

O frade sineiro anda ralado - os quartos de hora deixaram de soar na torre Sul do Convento, que as meias horas já se calaram misteriosamente dias atrás. Frei José dos Mártires desmontou o cilindro número quatro e não lhe encontrou defeito, inspeccionou o mecanismo do relógio e até arriscou equilíbrios perigosos para verificar se os martelos interiores e exteriores dos sinos estavam bem fixos. E nada. Os quartos de hora perderam a cantilena, o que muito desgosta o frade. Não crê que haja remédio sem a ajuda dos artífices das oficinas de Guilherme Withlock de Antuérpia, se ainda existirem. Eles construíram e montaram, vai para oitenta anos, os 46 carrilhões da torre Norte e os 47 da torre Sul, mais os mecanismos de relojoaria, e teclado para os sinos manuais e os cilindros dos mecânicos. Só que não há sequer a quem requerer a reparação e, enquanto os franceses não se forem embora, ninguém vai ralar-se além dele mesmo por ficar o tempo reduzido a um minuete de hora a hora (...) Mas o frade sineiro não se conforma. Além de se imaginar guardião do tempo, acha que o vigia melhor com música do que sem ela. E torna a verificar o cilindro preguiçoso, endireita-lhe uns dentes que lhe pareceram empenados e, da experiência, resultam duas débeis notas, um dó e um mi espaçados, melhor que nada. 

O tempo, esse, não se altera. Corre na espera lenta que Deus ou os ingleses expulsem os invasores e tragam um rei bom católico que reponha a paz pôdre e conserve o santo analfabetismo do povo. Mesmo que tenham secado as fontes do ouro do Brasil, talvez se arranjem uns cruzados para se repôr o tempo por música (...) 

 

Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

sensacionalismos de ontem e curiosidades eternas

17.07.17

Foi no dia 29 de Março de 1852 que se verificou o naufrágio do vapor Porto, à entrada da barra do Douro e à vista de centenas de pessoas que nada puderam fazer para socorrer os náufragos (...) O barco, que levava aos comandos o experiente piloto António Pinto, saíra do rio Douro, na véspera, ou seja a 28 de Março de 1852, que era um domingo, com destino a Lisboa (...).

O Porto era um vapor já cansado, já com alguns anos de uso. Evidenciava a necessidade urgente de alguns reparos, mas era geralmente considerado um navio seguro, e por isso ninguém, naquele dia, se atemorizou com os perigos que pudessem advir da viagem, apesar do mau tempo que se fazia sentir ao longo de toda a costa. Mas ao sair da barra, o barco começou a gingar perigosamente. O já aqui citado cronista, ao descrever a saída da embarcação do rio para o mar, diz que «naquele espaço que medeia entre as águas do Douro e o mar, o Porto começou a oscilar, ora para bombordo, ora para estibordo, enquanto o vento rugia no velame desfraldado em brutais sopros prenunciantes de tempestade, a varrer as primeiras lufadas da Primavera». (...) A viagem durou até alturas da Figueira da Foz. Dando-se conta de que em vez de amainar a tempestade se tornava cada vez mais violenta e ameaçadora, o piloto António Pinto resolveu retroceder para regressar ao ponto de partida. Não conseguiu, porém, entrar na barra e deu-se a tragédia.  

Voltamos a citar o colega que em 1852 fez a reportagem do acontecimento para um dos jornais do Porto: « A escassas dezenas de metros de terra firme, a embarcação empinava-se constantemente, desobediente ao leme (...) a corrente brincava com ela, encavalgava-a nas cordilheiras formidáveis ou mergulhava-a nos aquáticos vales espadanantes em tormentosos balanços rugidores». 

O estilo é, no mínimo, medonho. Mas noutros parágrafos as descrições são aterradoras (...) « o Porto agitava-se cavernosamente e, sob o céu empardecido, as gaivotas fugiam céleres para as bandas da terra, adejando, empurradas pela ventania que detinha a distância as barcaças dos pilotos. As vozes pretendiam dominar os estalos sinistros dos entrechoques das ondas, lançavam-se cabos ao desarvorado vapor, ouviam-se os desesperados gritos dos passageiros, acorridos à tolda, erguendo os braços, pedindo socorro e chorando ao verem os botes dos práticos fazendo-se à terra numa confissão de impotência». (...)  «Mas lá nos seus mistérios de negrume, o Porto acabara quebrado pelo meio. Como uma palha atirada de empuxão em empuxão, batera em lagedos, roçara em línguas de areia, morrera na fúria da porcela».

Na manhã seguinte, ao descerrar do nevoeiro, lobrigavam-se a boiar à tona das águas os restos do vapor. Das cinquenta e duas pessoas que havia a bordo, salvaram-se nove. Os sinos de todas as igrejas do Porto dobraram a finados (...) Entretanto, o mar começava a devolver os cadáveres à terra. Junto ao Castelo do Queijo apareceu a primogénita de José Alen, «descomposta», dizia um jornal; em Carreiros apareceram os corpos de James Elmsley, sobrinhos dos Andersens; o de um clérigo, o padre Bernardo António Pereira Leite de Carvalho; e o do juiz Silveira Pinto. O cadáver de José Plácido Braga, « inchado, ferido de rasgões fundos na carne pelos embates nos penedos», apareceu encravado nas rochas do Cabedelo. A sua mala, com uma moeda de ouro incrustrada no fundo, foi dar às praias de Lavra (...).

Uma curiosidade: em 19 de Julho de 1958, na barra do Douro, foram lançadas à agua as cinzas de um bravo marinheiro. Chamava-se John Cowie e era capitão do barco Seanew que vinha com muita frequência ao rio Douro, onde descarregava automóveis e sal e carregava vinho do Porto e têxteis. Quando morreu fez questão de que as suas cinzas fossem lançadas na barra do Douro, em homenagem ao sítio mais perigoso que conhecera, em toda a sua vida (e foi longa) de marinheiro. 

 

 

Germano Silva e Lucília Monteiro – Porto, a Revolta dos Taberneiros e Outras Histórias (2004)

Editorial Notícias (maio 2004)