Epá Babá
Estou perdido de não chegar a nada
António Ramos Rosa in CLAREIRAS - Obra Poética I
Assírio & Alvim (2018)
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Estou perdido de não chegar a nada
António Ramos Rosa in CLAREIRAS - Obra Poética I
Assírio & Alvim (2018)
e o meu pai, descalço, a exilar-se no sofá da sala de membros encolhidos como um gafanhoto numa haste a protestar
- Quase não há dia que não fique para aqui senhores
a coçar a nuca com as patas de cima, a minha mãe
- Hoje estás impossível
e até o sol me trazer de novo mais nada, apenas resmungos parecidos com um tractor em ponto morto ele que de manhã em calças de pijama se barbeava a cantarolar, de bocadinho de algodão colado à bochecha porque se cortou, por baixo do algodão um traço vermelho que teimava em não secar e a minha mãe na cozinha a aquecer o leite de costas para toda a gente, abrindo e fechando gavetas com força
- Onde pára o teu babete?
António Lobo Antunes – Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera (2016)
Publicações D. Quixote | Leya (2016)
Uma vez - contam os biógrafos do Profeta - ao ditar ao escrita Abdullah, Maomé deixou uma frase a meio. O escriba, instintivamente, sugeriu-lhe a conclusão. Distraído o Profeta aceitou como palavra divina o que dissera Abdullah. Este facto escandalizou o escriba, que abandonou o Profeta e perdeu a fé.
Estava errado. A organização da frase, em última análise, era da responsabilidade dele; era ele que devia ajustar contas com a coerência interna da língua escrita, com a gramática e a sintaxe, para captar a fluidez de um pensamento que se expande para fora de todas as línguas antes de se tornar palavra, e de uma palavra particularmente fluida como é de um Profeta. A colaboração do escriba era necessária a Alá, desde que decidira exprimir-se num texto escrito. Maomé sabia-o e dava ao escriba o privilégio de concluir as frases; mas Abdullah não tinha consciência dos poderes de que estava investido. Perdeu a fé em Alá porque lhe faltava a fé na escrita, e em si próprio como operador da escrita.
Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)
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