essa pergunta que regressa ciclicamente ao seu espírito: o que é a Natureza?
Raimundo olha à sua volta e, nas ruas de Mafra ou nas colinas verdes salpicadas de moinhos e casitas brancas não vislumbra anjos, nem madonas, nem santos, nem cordeiros de Deus. O que vê é uma outra natureza habitada por rudes cavadores, saloias dobradas para a terra das hortas, o oleiro com o barro nas mãos como uma segunda pele, o sapateiro na banca a furar o couro com a sovela, o tanoeiro a ajustar as aduelas de folha numa celha, o ferreiro com o corpo de bronze entre o fole e a bigorna, o regatão bocejando à porta da lojeca, o carpinteiro de formão apontado a uma tábua de pinho, o aguadeiro de porta em porta, a alombar com o barril.
É essa gente que ele tem ganas de pintar. E decide que essa gente e essa gana são, para ele, a Natureza. A Natureza que ele gostaria de trazer para fora da obscuridade das igrejas e da privança dos palácios.
Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)
Na eira , 1861
Tomás da Anunciação