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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

fado (padrinho)

21.07.21

Era uma vez uma jovem chamada Borralheira [...] A mãe adotiva da Borralheira tratava-a muito cruelmente e as irmãs adotivas obrigavam-na a trabalhar duramente, como se ela fosse a sua trabalhadora não paga pessoal.

Um dia chegou-lhes um convite a casa. O príncipe celebrava a sua exploração do campesinato espoliado e marginalizado organizando um baile de gala. As irmãs adotivas da Borralheira ficaram todas excitadas [...] Começaram a pensar nas roupas caras que iriam usar para alterar e escravizar as suas imagens corpóreas naturais a fim de emularem um padrão irrealista de beleza feminina [...] Ao cair da noite a mãe e as irmãs adotivas deixaram a Borralheira em casa para terminar o seu trabalho [...]

De repente chispou um relâmpago e diante dela estava um homem com roupas largas em algodão e um chapéu de aba larga [...]

«Olá Borralheira, eu sou o teu fado padrinho, ou representante divino individual, se preferires. Queres então ir ao baile, não é verdade? E cingir-te ao conceito masculino de beleza? Espremer-te num vestido justo que te vai cortar a circulação sanguínea? Entalar os pés em sapatos de salto alto que te arruinarão a estrutura óssea? Pintar a cara com produtos químicos e cosméticos testados em animais não humanos?»

«Oh sim, absolutamente!», respondeu ela sem hesitação [...]

Muitas, muitas carruagens faziam fila às portas do palácio naquela noite; aparentemente, nunca ninguém pensara em partilhar o transporte. Não tardou que a Borralheira chegasse [...]

Os homens olharam para ela, e desejaram esta mulher que resumia perfeitamente os seus ideais de sedução feminina do tipo Barbie. As mulheres, treinadas desde tenra idade a desprezar o próprio corpo, olharam-na com inveja e despeito [...]

A Borralheira depressa atraiu sobre si o olhar predatório do príncipe, ocupado a discutir torneios e lutas de ursos com os seus companheiros [...] 

A Borralheira estava orgulhosa da comoção por si causada [...]

O príncipe tornara claro aos seus amigos que tencionava «tomar posse» da jovem senhora. Mas a determinação do príncipe irritou os compinchas, que também a desejavam e queriam tomá-la. Os homens desataram a gritar e a empurrar-se [...]

As mulheres estavam sideradas perante esta feroz exibição de testosterona, mas, por mais que tentassem, não conseguiam separar os combatentes. Pareceu às outras mulheres que a Borralheira era a causa de toda a tribulação, portanto cercaram-na e começaram a evidenciar uma hostilidade muito pouco fraterna. Ela tentou escapar, mas os seus pouco práticos sapatos de vidro tornaram a tentativa quase impossível. Felizmente, nenhuma das outras mulheres estava melhor calçada.

A algazarra atingiu tais níveis que ninguém ouviu o relógio da torre dar a meia-noite. Ao bater da décima segunda badalada, o belo vestido e sapatos da Borralheira desapareceram e ela voltou a ver-se nos seus andrajos de camponesa. Agora a sua mãe e irmãs adotivas reconheceram-na, mas calaram-se para evitar passar uma vergonha.

As mulheres ficaram mudas perante esta transformação mágica. Liberta dos constrangimentos dos vestidos e dos sapatos, a Borralheira suspirou, espreguiçou-se e coçou as costelas. Sorriu, cerrou os olhos e disse:

«Agora matai-me se quiserdes, irmãs, que pelo menos morro consolada.»

As mulheres em volta ficaram novamente invejosas, mas desta feita adotaram uma estratégia diferente: em vez de exercerem vingança sobre ela, livraram-se de coletes, espartilhos, sapatos e de tudo quando as apertava. Dançaram, pularam e guincharam de pura alegria, finalmente à vontade na sua roupa interior e pés descalços.

Se os homens tivessem levantado os olhos da sua dança machista de destruição, teriam visto muitas mulheres desejáveis vestidas como quem vai para a cama. Mas continuaram a martelar-se, esmurrar-se, pontapear-se e rasgar-se uns aos outros, até que morreram todos.

As mulheres deram estalidos com a língua, mas não sentiram remorsos. Agora o palácio e o reino eram delas. O seu primeiro ato oficial foi vestirem os homens com as roupas de que elas próprias se tinham despojado e declararem à comunicação social que a zaragata tinha começado quando alguém ameaçara denunciar as tendências que o príncipe e os seus companheiros tinham para o travestismo. O segundo consistiu na criação de uma cooperativa de confeção que só produzisse roupas femininas confortáveis e práticas. Depois afixaram no castelo um cartaz a anunciar Cinza a Vestir (assim se chamava a nova linha de vestuário) e, graças à autodeterminação e a marketing inteligente, todas - mesmo a mãe e as irmãs adotivas - viveram felizes para sempre.

 

COMENTÁRIO

James Finn Garner parodia a ideologia contemporânea do «politicamente correto» reescrevendo à luz da mesma os principais contos clássicos. E, pelo próprio excesso da expurgação realizada, é a ideologia do politicamente correto que aparece afinal subtilmente satirizada.

[...]

As mulheres, primeiro despeitadas pelo triunfo da Borralheira no quadro dos valores machistas, depressa percebem o valor da libertação involuntária da Borralheira quando soa a meia-noite. Assim, dá-se uma revolução feminista radical que não só derruba os valores masculinos como reorganiza a vida sem homens. Impera doravante uma visão do mundo - e uma economia - centrada no respeito pelo corpo feminino e pela natureza. A ironia é que tudo isto se dá graças à maquinação do fado padrinho - é afinal um homem quem urde as tramas da revolta feminina nesta paródia do politicamente correto.

 

Francisco Vaz da Silva – Gata Borralheira e Contos Similares (2011)
Círculo de Leitores e Temas e Debates (2011)

 

 

não há vento que pare / A potência natural

04.06.21

Calar, calar talvez.

Querer dizer é demais. 

 

António Ramos Rosa in MEDIADORA DO SILÊNCIO - Obra Poética I

Assírio & Alvim (2018)

 

[...]

Eu escrevi páginas e páginas
Vi sal e então lágrimas
Esses homens nos carros
Não conseguindo remar contra a correnteza
Escrito em uma lápide
"Não existe Deus na minha casa"
Mas se você encontrar o sentido do tempo
Você sairá do seu esquecimento
E não há vento que pare
A potência natural
Do ponto de vista correto
Dá pra sentir o álcool no vento
Com asas de cera nas costas
Procurarei aquela altura
Se você quer me parar, tente de novo
Tente cortar fora a minha cabeça
Porque
 
Estou fora de mim, mas sou diferente deles
E você está fora de sim, mas é diferente deles
Estamos fora de nós, mas somos diferentes deles
Estamos fora de nós, mas somos diferentes deles
 
Infelizmente as pessoas falam
Falam, mas não sabem do que falam
Leve-me aonde posso flutuar
Porque sinto falta de ar aqui
E infelizmente as pessoas falam
Falam, mas não sabem do que falam
Leve-me aonde posso flutuar
Porque sinto falta de ar aqui
Infelizmente as pessoas falam
Falam, mas não sabem de que raios falam
Leve-me aonde posso flutuar
Porque sinto falta de ar aqui
[...]
 

https://lyricstranslate.com

 

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rock poema

06.01.21

«Vais deitar abaixo os grupos de rock. Nunca vi nada assim. Gostaria de ter-te lá todas as sextas e sábados à noite.»

«Isso não resultaria, Marty. Pode-se cantar a mesma canção dezenas de vezes, mas com os poemas querem sempre algo de novo.»

 

Charles Bukowski – Mulheres (1978)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2003)

 

 

quanto mais dívidas, melhor

(uma daquelas situações)

10.12.20

O seu ex-marido, Arnold, estava ligado ao show-business e ao mundo da arte. Não soube o que fazia concretamente. Assinava constantemente contratos com estrelas do rock, pintores, etc. O negócio tinha 60.000 dólares de débito, mas florescia. É uma daquelas situações em que, quanto mais dívidas se tiver, em melhor posição se fica. 

 

Charles Bukowski – Mulheres (1978)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2003)

 

 

the day the music died

03.02.17

On this day in 1959, rising American rock stars Buddy Holly, Ritchie Valens and J.P. “The Big Bopper” Richardson are killed when their chartered Beechcraft Bonanza plane crashes in Iowa a few minutes after takeoff from Mason City on a flight headed for Moorehead, Minnesota. Investigators blamed the crash on bad weather and pilot error. Holly and his band, the Crickets, had just scored a No. 1 hit with “That’ll Be the Day.” (...)

Singer Don McLean memorialized Holly, Valens and Richardson in the 1972 No. 1 hit “American Pie,” which refers to February 3, 1959 as “the day the music died.

 

in http://www.history.com/this-day-in-history/the-day-the-music-died