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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

invariavelmente

07.02.19

disse a assistente, com um sorriso triste e cansado de quem trabalhava para pagar as propinas da faculdade, visto que os pais já não tinham posses para isso, de quem fazia turnos extra para conseguir mais algum para pôr numa conta poupança-habitação com o namorado, para se meterem numa casa assim que tivessem acabado os respectivos cursos e tivessem arranjado empregos que lhe dessem aquela segurança de que um casal em início de vida necessitava para se chegar ao balcão e pedir cem mil euros, a trinta e cinco anos, com taxa variável e indexada a uma coisa que eles não sabiam muito bem o que era, mas que era suficiente para lhes tirar muitas noites de sono. 

 

Ricardo Adolfo, Mizé - Antes galdéria do que normal e remediada

Alfaguara (2011)

 

 

 

e perante o costume dizem nada

31.01.19

Ora isso queria dizer que Palha não só tinha de se meter numa das artérias mais movimentadas da cidade, como teria de estacionar o carro numa zona em que não havia lugares livres a pagar, quanto mais de graça. A cidade tinha sido conquistada por parquímetros e arrumadores. E mais uma vez ninguém tinha dito nada. Até parecia que as pessoas gostavam de ser roubadas por agarrados e agentes da câmara, que se revezavam num ciclo perfeito. 

 

Ricardo Adolfo, Mizé - Antes galdéria do que normal e remediada

Alfaguara (2011)

 

 

 

 

 

Gold Digger

28.01.19

- Ando a fazer escritórios e eles só querem que a gente vá limpar mais tarde.

- E vai de sacos e tudo?

- Não, isso não, apanho agora aqui o sete, desço lá ao pé de minha casa, ponho o comer no forno, deixo a mesa pronta para o marido e para os miúdos e depois vou, aquilo também é logo ali ao pé da estação.

- Deve custar, hã?

- Custa mais passar fome.

- Lá isso é verdade - disse a Mizé, que via ali mais um sinal de como aquelas não eram as pessoas com quem ela queria ter conversas de circunstância. Ela precisava de se rodear de quem a inspirasse, não de quem a deprimisse ainda mais. Ela precisava de desconhecidos com condutor particular, não de quem andava em transportes públicos. 

 

Ricardo Adolfo, Mizé - Antes galdéria do que normal e remediada

Alfaguara (2011)

 

 

 

 

 

 

 

rotina da magia

21.01.19

É que os clientes quando chegavam do trabalho cansados, desmotivados, prontos para enfiar um tiro nos cornos, sempre passavam por ali - e em vez de chacinarem a família, levantavam o último herói psicopata e com ele arrasavam exércitos de maus em menos de duas horas. O que era o tempo perfeito para voltarem para a cama e dormirem aquelas seis, sete horinhas que os ia deixar fresquinhos para mais um dia de labuta nos cubículos de Lisboa e arredores. 

 

Ricardo Adolfo, Mizé - Antes galdéria do que normal e remediada

Alfaguara (2011)

 

 

o retângulo da FARSA

03.01.19

Já há mais de três minutos que Palha estava parado num entroncamento sem prioridade, a ouvir buzinadelas várias de faltas-de-ar que só pensavam era neles e não percebiam que ele não conseguia entrar devido à velocidade com que os outros vinham da rotunda. A cobra antes da recta da meta, como Palha lhe chamava, que devido ao tracejado e ao piso muito próprio, acordava nos condutores mais pacatos instintos de ultrapassagem só vistos em pilotos de alta competição e noutras estradas com as mesmas características, oficialmente reconhecidas pela FARSA - Federação Anónima de Rali Suburbano Amador.

 

Ricardo Adolfo, Mizé - Antes galdéria do que normal e remediada

Alfaguara (2011)

 

 

 

 

compras de emergência

08.10.18

Na primeira mercearia, o senhor Manuel, que já não era o jovem de há quarenta anos, carregava com dificuldade os caixotes de madeira para dentro, cheios de tristeza e azia. Desde que tinha sido completamente rodeado pelos hipermercados à entrada do subúrbio que o parco negócio que ele ainda conseguia fazer tinha ficado reduzido às compras de emergência. Nem as clientes de décadas, que até tinham tido direito a entregas gratuitas ao domicílio, queriam saber que ele continuava a levantar-se todos os dias às quatro da manhã para se ir abastecer e de seguida as desentalar sempre que o planeamento semanal dos jantares falhava. Elas agora só queriam promoções, sorteios, cartões de cliente e quilos de sacos grátis para o lixo. Elas, que tinham feito dele um homem rico, vingavam-se agora por todos os anos em que ele lhes tinha ferrado nos preços dando azo a inúmeras discussões domésticas.

 

Ricardo Adolfo,  Mizé - Antes gálderia do que normal e remediada 

Alfaguara (2011)

 

 

 

 

o melhor é dar a volta

03.09.18

- Isto o melhor é dar a volta - atirou um fulano que passava ao lado do Palha. 

- Não anda, é? - perguntou o Palha. 

- Oh, pelo menos mais meia hora. 

- Atão porquê?

- Foi ali um gajo numa Toyota que deu uma passa num preto. 

- Num preto?

- Sim, num preto, tá práli a gemer debaixo do carro e não há meio de virem os bombeiros. 

- Mas já chamaram?

- Eu acho que sim, mas também não confirmei porque tenho a bateria do móvel quase no fim. 

- E o gajo está mal?

- Quem? O preto, ou o gajo do Toyota? 

- O preto - clarificou o Palha. 

- Deve tar, o gajo só geme, mas também não dá pra ver nada que ele tá lá mesmo debaixo. 

- E o gajo do Toyota?

- Esse tá de cabeça perdida, já viu o que é?

 

 

 

Ricardo Adolfo,  Mizé - Antes gálderia do que normal e remediada 

Alfaguara (2011)