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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

estados de negação

20.12.24

“Portugal integra uma lista de países cujos cidadãos podem permanecer durante 90 dias nos Estados Unidos, ao abrigo de um visto de turista. O problema é que muitos recorrem a esse estratagema para entrarem e nunca mais saírem. Alguns andam por cá há 20 anos e nunca se legalizaram”, indicou a responsável.

Muitos dos portugueses nessa situação integrou-se e constituiu família, com filhos nascidos nos Estados Unidos: mesmo que estes sejam menores, não servirão de salvaguarda. “Como vivem aqui há muito tempo, pensam que nada lhes poderá acontecer. Estão em absoluta negação”, frisou Maria Vieira Bedard, diretora-executiva do ‘SER-Jobs for Progress’, organismo de educação ocupacional de Fall River. “Como sobreviveram à primeira Administração Trump, julgam que poderão repetir a fórmula durante a segunda.”

“Alguns chegam em pânico. Não sabem o que fazer”, salientou Hughes. “E o pior é que continuam a ser alvo de abuso por advogados que lhes prometem resolver o problema e que, no fim, lhes ficam com o dinheiro. Falo de advogados na própria comunidade lusa”, apontou, indicando a “impaciência” para quem quer vir para os Estados Unidos, mas, ao fazê-lo clandestinamente, “hipoteca oportunidades futuras de um dia poder entrar”.

in https://executivedigest.sapo.pt/noticias/milhares-de-portugueses-estao-em-risco-de-deportacao-quando-trump-chegar-a-casa-branca/?utm_source=SAPO_HP&utm_medium=web&utm_campaign=destaques

 

https://www.tempojunto.com/2018/07/04/desenho-cego-e-uma-forma-de-criar-a-partir-das-memorias-das-criancas/

cherchez

13.12.24

O Porto tinha uma condescendência especial para as mulheres infiéis, se elas eram inteligentes bastante para não preferirem o amante aos deveres da sociedade. Não se discutiam os gostos, logo que não se cometessem erros com eles. E era um erro enternecer-se por um destino quando se tratava apenas de amar um homem, coisa breve e sem muito de herético. A bela Raquel, de resto, tinha uma só paixão: amassar uma fortuna sólida e administrar os rendimentos. A maneira como discutia com os seus rendeiros ou fazia as contas duma obra de alvenaria, arrefecia o coração mais arrojado. A verdade é que por toda a parte lhe facilitavam as coisas: escrituras, compras de terrenos, negócios inumeráveis. Os homens da edilidade e do fisco, administradores e juízes estavam prontos a ajudá-la, porque era mais inofensivo conceder-lhe favores com a corrupção do que sentimentos com consequências. A sua vida estava tão ocupada por toda a sorte de batalhas financeiras, e pelo jogo, que não lhe ficaria tempo para o amor se ele fosse outra coisa para Raquel senão um acessório da toilette. Usava os amantes a condizer com o vestido, e Deus sabe quantos vestidos de passeio e de visita ela encomendava todas as estações. Ela não tinha qualquer domínio sobre José Augusto; mas era por isso mais perniciosa do que certas mulheres que causam devastação no carácter dos homens; porque não a receava, José Augusto atribuía-lhe direitos que iam até confiar-lhe os segredos mais preciosos.

 

Agustina Bessa-Luís – Fanny Owen (1979)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

 

 

handcuffed western world

13.07.21

[...] um jogador negro do FCP, foi ruidosamente insultado por adeptos do Vitória. O insulto mais ouvido consistiu numa simulação de sons de macaco. [...] Esta associação a animais de pessoas percebidas como pertencendo a «raças» diferentes é comum naqueles que partilham crenças racistas ou um forte preconceito racial e o expressam de forma aberta. Os nazis associavam os judeus a ratos e baratas. No passado recente, também os tabloides ingleses retomaram estas expressões a propósito dos imigrantes subsarianos que tentam alcançar a Europa cruzando o Mediterrâneo. [...] o racismo continua hoje vivo [...] Importa, por isso, compreender os mecanismos que mantêm o racismo, seja de forma mais escondida ou mais manifesta, no quotidiano e no funcionamento das instituições. Esse objetivo implica analisar crenças, atitudes, sentimentos, normas sociais e funcionamentos institucionais que alimentam e legitimam o racismo, apesar da sua condenação pela democracia, pelos valores igualitários e pela liberdade, e apesar dos custos das desigualdades sociais que produz. 

 

Jorge Vala  – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

 

velho sistema instagram

18.11.20

Na cidade, as propostas para mobilar as casas estão recheadas de produtos fantásticos. Frigoríficos cheios de comida pronta a ser confeccionada. Aspiradores, que permitem que a dona de casa rodopie pelo seu lar, limpando-a como quem brinca. Máquinas de lavar roupa, que evitam a canseira dos tanques onde à força de braços e mãos que esfregam, torcem, batem, na faina das barrelas domésticas, se lavam as roupas da casa. Panelas de pressão, que conseguem amaciar o mais rijo naco de carne, enquanto o diabo esfrega um olho. Na cidade, as tarefas domésticas diárias, a acreditar nos maravilhosos anúncios, são meros passatempos que lindas mulheres praticam alegremente. E toda a gente parece resplandecer de asseio. Já no campo, um luxo chama-se telefonia. Um sonho chama-se telefone. Visitas extemporâneas e de última hora... não existem. Visitas só a do padre ou a do médico. Não costumam ser bom sinal. Vizinhos? Ajudam-se, mutuamente, quando é preciso, mas ninguém entra pela casa de ninguém a pedir comida e a reclamar jantares: era só o que mais faltava. E os gestos quotidianos - varrer, limpar, cozinhar, arar os campos, pensar o gado, mondar, ceifar, enxertar as árvores, colher os frutos, apanhar caruma, acender a lareira -, são obrigações. Implicam muitas horas de trabalho esforçado, e não se pensa nelas como passatempos. Ter comida para cozinhar, isso sim, é uma alegria. Matar a fome a todos, aí está o verdadeiro prazer. 

Na cidade, famílias ostensivamente felizes têm crianças, quase sempre louras e inevitavelmente lindas, que adoram pudim Royal e «gostam e necessitam de Milo», o fortificante mágico sem o qual as suas pobres cabecinhas encaracoladas tombam de exaustão sobre imaculados cadernos e livros da escola. Mas as cabecinhas das crianças louras ou morenas dos campos, não tombam sobre cadernos e livros imaculados. Se tombarem, uma palmada do professor ou da professora fornece toda a energia de que precisam para se levantarem imediatamente. Portanto, ali o Milo não faz falta nenhuma a ninguém. Até porque o dinheiro não chega para esses luxos... finalmente, no campo, não se fala em beleza o tempo todo, nem se evocam vocábulos como elegância por dá cá aquela palha. De resto, o mais elementar sentido de decência tornaria impensável que as mulheres corressem de braços no ar ao encontro dos seus homens, quando estes chegam a casa, suados, sujos de terra, exaustos de trabalhar, para lhes servirem algo de tão insípido como um estupendo caldo Maggi. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018) 

 

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A refeição do menino

Júlio Pomar