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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

da saga: "não sou racista [mas...] porque insisto em não tirar as palas dos olhos" IV

23.05.23

[...] dizendo alto e rindo muito que Mattoso queria ser camarista era só para poder recuperar os antigos escravos:

- Mattoso chega à câmara, pede o apoio do governador-geral e kuáta 10 os pretos para lhe trabalharem a fazenda. Toda a gente sabe que com a abolição da escravatura esse ambaquista quase faliu, não houve monangamba que lhe aguentasse os maus tratos, fugiram todos! - E com os olhinhos fechados de gozo, virando-se para Vieira Dias: - Pois, que os princípios não enchem barriga. Tanto vocês gritaram contra a escravatura e agora querem é voltar atrás... [...]

Caninguili, porém [...] não conseguindo conter-se replicou que o que estava em causa não era o zelo antiescravista do senhor Mattoso:

- O senhor Mattoso não será certamente um homem de impoluto passado. Mas numa terra como a nossa só remexe no passado dos outros quem gosta de sujar as mãos. O que está em causa é aquilo que para nós, angolanos, pode significar a eleição de Mattoso da Câmara. Afinal ele é um filho do país; conhece a terra melhor do que aqueles que vieram de fora.

Ezequiel abespinhou-se:

-Lá me vêm os senhores com essa conversa. Somos todos portugueses, ouviu? Portugueses de Angola ou portugueses do reino é tudo a mesma coisa. E, de resto, o senhor também veio de fora...

Esta última frase foi interrompida por um martelado bater de palmas [...]

- Falou o rei! - Arantes Braga ria agora abertamente. - E diga-me lá o distinto lusitanófilo de que nos vale a nós a lusitanidade? De que nos vale a nós sermos iguais a um povo miserável, analfabeto e bruto? E que nos pretende civilizar enviando-nos o pior lixo das suas sarjetas sociais: os seus ladrões, assassinos e prostitutas?

Arantes Braga era sempre assim. Redundante, provocador, de verbo fácil e excessivo. Onde quer que chegasse era vê-lo atear incêndios, a desatar os ventos, a encapelar os mares...

- Puta que o pariu! - O velho Afonso erguia o dedo apoplético. - Se não fôssemos nós, ainda vocês andavam de tanga, a devorarem-se uns aos outros. A fazerem porcarias.

E avançava contra Braga na evidente intenção de se medir com ele. Caninguili pôs-se de permeio, pediu calma, agarrou Afonso pelos ombros. Vieira Dias tentava puxar Braga para fora do salão.

Por fim lá conseguiram acalmar Afonso, que acabou por ir embora resmungando contra a ingratidão desses pretos.

- Demos-lhes tudo - dizia, afivelando o chapéu colonial -, ensinámo-los a ler, a vestir, a calçar, para quê? Para se virarem agora contra nós!

E tendo subido em sua machila 11 ainda berrou para trás, como quem cospe, os seus sujos quimbundus de branco matoense.

- Bu uadila, kunene-bu 12 !

 

10 Agarra

11 Tipoia

12 Onde comes não cagues. 

 

José Eduardo Agualusa – A Conjura (1989)

Quetzal Editores (2017)

 

 

ssshhhhh

06.04.22

Lisos à superfície, somos todos feitos de ossos, os quais, e à semelhança das serpentes, se vão contorcendo.

 

Virginia Woolf – As Ondas (1931)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

8 de março x 365

08.03.22

Na Nike, viveu um incidente com um cliente habitual, que numa ocasião apareceu transfigurado. «Era uma pessoa com dinheiro, que já tinha atingido vários talões GT [compras superiores a 500 euros], mas naquele dia apareceu com outra pessoa. Entrou com um gelado na loja e, como eu lhe disse que não podia comer lá dentro, começou a ser porco comigo. Mesmo. A dizer coisas obscenas, a chamar-me nomes, a convidar-me para sair com ele. Eu fui falar com o responsável de loja e disse que ia para o armazém. É por estas coisas que há sempre homens de serviço na loja, eles nunca querem que haja só turnos de raparigas à noite.» Mais uma vez houve recurso à equipa de vigilantes do centro comercial, e os clientes GT acabaram por sair. Mas passaram o resto da noite a passear-se em frente à loja, para a frente e para trás, numa atitude de desafio. «Até que, passado um pouco, passaram à nossa porta com uma prostituta. Claramente, era uma prostituta. Não sei que sentido é que aquilo fez. Acho que foi só para mostrar.» Nesse dia, à conta do nervosismo, o responsável de loja acabou por levar Vanessa a casa de automóvel, contornando uma hipotética espera a saída do turno.

 

Pedro Vieira – Em que posso ser útil? (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pedro Vieira (2021)

 

in https://casadeimagem.com/dia-internacional-da-mulher/

 

ressacas

14.06.21

No princípio dos anos 80, o Bairro Alto onde o fado ainda é vadio e transpira de becos e ruas, desperta do seu sonho noturno de chulos e putas velhas de tetas imensas, mais as amas dos seus filhos na rua das Gáveas, as casas de passe, as redações de jornais, lado a lado com casas pobres e casebres, palácios decrépitos, vazios ou vagamente habitados e igrejas transformadas em esquadras de polícia, conventos herméticos de muros altíssimos, de onde assomam palmeiras e ciprestres, os adelos, humildes antepassados de antiquários, e as omnipresentes leitarias e tascas onde se come bem por pouco dinheiro. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018) 

 

 

fazer cordas de areia

01.06.21

No início do giro, endireitava-se, tirava o apito, um dos grandes, e soprava, com cuspo a voar em todas as direcções. Isto era para as crianças saberem que ele tinha chegado. Levava-lhes rebuçados. Elas vinham a correr e ele ia-lhes dando os rebuçados enquanto descia a rua. O bom do G.G. [...]

Mas um dia o G.G. meteu-se numa alhada. O bom do G.G. Encontrou uma miúda pequena nova na zona. E deu-lhe rebuçados. E disse:

- Bem, tu és uma menina muito bonita! Gostava que fosses a minha menina!

A mãe estava a ouvir à janela e desatou a correr aos gritos, a acusar o G.G. de molestar uma criança. Como não conhecia o G.G., os rebuçados e aquela conversa foram demais para ela. 

O bom do G.G. Acusado de molestar uma criança.

Entrei e ouvi o Stone a falar ao telefone com a mãe, tentando explicar-lhe que o G.G. era um homem honrado. O G.G. estava sentado à frente do seu móvel, absorto.

Quando o Stone acabou a conversa e desligou, eu disse-lhe:

- Não devias dar graxa a essa mulher. Ela tem uma mente suja. Metade das mães americanas, com as suas queridas ratas e as suas queridas filhinhas, metade das mães americanas tem a mente suja. Ela que se lixe. [...]

O Stone abanou a cabeça.

- Não, as pessoas são dinamite! São dinamite! 

 

Charles Bukowski – Correios (1971)

Antígona (2015)

 

 

sóbria fusão

16.07.20

Sóbrio o teu corpo me pede 

penetração: nomes puros:

os de boca, braços, mãos

sobre a terra e sobre os muros.

 

Sóbrio o teu corpo me pede

nomes justos, nomes duros:

os de terra, fogo e punhos,

claros, acres, escuros. 

 

António Ramos Rosa in ANIMAL OLHAR - Obra Poética I

Assírio & Alvim (2018)

 

 

não

05.11.19

- Não te tornaste puritana com o luto, pois não? - perguntou-me. 

 

 

Wray Delaney - Memórias de Uma Cortesã  (2016)

Quinta Essência, Oficina do Livro (2017)

 

 

pict_md_dnBdYHFnYWU1ODs7PjooYH53YGJicCs4enp9NGZvb2

Erotic painting on the wall of the "Cook Chamber" of the Vetii's House, on of the richest of the city. Access of this room was forbidden for women until the seventies.

in http://www.stephanecompoint.com/41,,,11027,en_US.html

 

 

encontrões na vala comum

18.07.19

Queria

Que me levasses no coração pelo Universo 

(...)

«Que nenhum filho da puta se me 

          [atravesse nos teus versos como a multidão aos 

                                                                         [encontrões»

 

 

Paulo da Costa Domingos in Vala Comum

 

 

Paulo da Costa Domingos – Carmina (1971-1994)
Antígona (1995)

 

O Jardim das Delícias Terrenas (1504)

Hieronymus Bosch

 

 

 

não lamentemos o estado de certas editoras

15.01.19

Não lamentes, ó Nize, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putissimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas teem reinado:

Dido foi puta, e puta d'um soldado;
Cleopatra por puta alcança a c'roa;
Tu, Lucrecia, com toda a tua proa,
O teu conno não passa por honrado:

Essa da Russia imperatriz famosa,
Que inda ha pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:

Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, ó Nize, duvidosa
Que isso de virgo e honra é tudo peta.

 

Bocage - SONETO DE TODAS AS PUTAS

 

P.S. o ano passado foi esta a "preocupação didático-pedagógica":  valter hugo mãe e a moralidade (a lápis) azul