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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

província retangular

04.10.23

So when I got back and saw that he was so sorry, I told him that, the business about this being a class thing, very calmly, and do you know? We must have talked for two hours straight, we just talked and talked, and he said he was kind of a peasant too, and that's why he was so sensitive about people being provincial, because all his life he had deep down felt provincial, and he didn't want to be. He said, I'm a snob Olive, and I'm not proud of that. 

Elizabeth Strout – Olive, Again (2019)
Penguin Random House UK (2019)

Clero, Nobreza e Povo, Vila Velha do Cu de Judas
Cartoon de João Abel Manta, Lisboa, 1970 (c.), Portugal.

in https://www.arquipelagos.pt/imagem/clero-nobreza-e-povo-vila-velha-do-cu-de-judas-cartoon-de-joao-abel-manta-1970-c-portugal/

 

da saga: "não sou racista [mas...] porque insisto em não tirar as palas dos olhos" IV

23.05.23

[...] dizendo alto e rindo muito que Mattoso queria ser camarista era só para poder recuperar os antigos escravos:

- Mattoso chega à câmara, pede o apoio do governador-geral e kuáta 10 os pretos para lhe trabalharem a fazenda. Toda a gente sabe que com a abolição da escravatura esse ambaquista quase faliu, não houve monangamba que lhe aguentasse os maus tratos, fugiram todos! - E com os olhinhos fechados de gozo, virando-se para Vieira Dias: - Pois, que os princípios não enchem barriga. Tanto vocês gritaram contra a escravatura e agora querem é voltar atrás... [...]

Caninguili, porém [...] não conseguindo conter-se replicou que o que estava em causa não era o zelo antiescravista do senhor Mattoso:

- O senhor Mattoso não será certamente um homem de impoluto passado. Mas numa terra como a nossa só remexe no passado dos outros quem gosta de sujar as mãos. O que está em causa é aquilo que para nós, angolanos, pode significar a eleição de Mattoso da Câmara. Afinal ele é um filho do país; conhece a terra melhor do que aqueles que vieram de fora.

Ezequiel abespinhou-se:

-Lá me vêm os senhores com essa conversa. Somos todos portugueses, ouviu? Portugueses de Angola ou portugueses do reino é tudo a mesma coisa. E, de resto, o senhor também veio de fora...

Esta última frase foi interrompida por um martelado bater de palmas [...]

- Falou o rei! - Arantes Braga ria agora abertamente. - E diga-me lá o distinto lusitanófilo de que nos vale a nós a lusitanidade? De que nos vale a nós sermos iguais a um povo miserável, analfabeto e bruto? E que nos pretende civilizar enviando-nos o pior lixo das suas sarjetas sociais: os seus ladrões, assassinos e prostitutas?

Arantes Braga era sempre assim. Redundante, provocador, de verbo fácil e excessivo. Onde quer que chegasse era vê-lo atear incêndios, a desatar os ventos, a encapelar os mares...

- Puta que o pariu! - O velho Afonso erguia o dedo apoplético. - Se não fôssemos nós, ainda vocês andavam de tanga, a devorarem-se uns aos outros. A fazerem porcarias.

E avançava contra Braga na evidente intenção de se medir com ele. Caninguili pôs-se de permeio, pediu calma, agarrou Afonso pelos ombros. Vieira Dias tentava puxar Braga para fora do salão.

Por fim lá conseguiram acalmar Afonso, que acabou por ir embora resmungando contra a ingratidão desses pretos.

- Demos-lhes tudo - dizia, afivelando o chapéu colonial -, ensinámo-los a ler, a vestir, a calçar, para quê? Para se virarem agora contra nós!

E tendo subido em sua machila 11 ainda berrou para trás, como quem cospe, os seus sujos quimbundus de branco matoense.

- Bu uadila, kunene-bu 12 !

 

10 Agarra

11 Tipoia

12 Onde comes não cagues. 

 

José Eduardo Agualusa – A Conjura (1989)

Quetzal Editores (2017)

 

 

moral, bom senso, paz de espírito, regras de vida, meio termo, ambição ignorada.

08.02.23

1755 fora uma data também especial. Com as velhas paredes dos palácios setecentistas  de Lisboa caíra também uma certa casta vigorosa e subtil do português para quem a sensibilidade era o estribo das suas empresas. Depois o Marquês impusera no reino a sua férrea marca burguesa. A moral sucedeu à doce inconstância da alma de que a inspiração dum povo aproveita; o bom senso tomou o lugar do bom gosto. A paz de espírito foi assegurada pelo uso de regras de vida minuciosas e severas. A gente honesta, amante do meio termo, proliferou, fez bons negócios, e a insipidez que o cálculo protege passou a ignorar a ambição no seu alto sentido. 

 

Agustina Bessa-Luís – Fanny Owen (1979)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

19 MAR 2021
"Estamos em cima de um barril de pólvora que um dia vai explodir"
Engenheiro especializado em sismos e professor no Instituto Superior Técnico Mário Lopes defende que falta fiscalização das normas relativas à resistência sísmica. E que a prevenção devia começar pelos cidadãos que, desde logo, deviam exigir essas condições quando vão habitar uma casa.

https://www.dn.pt/edicao-do-dia/19-mar-2021/estamos-em-cma-de-um-barril-de-polvora-que-um-dia-vai-explodir-13475414.html

 

 

vida de retângulo

28.09.22

A vida de província era acidentada pela luta mesquinha das opiniões, a intolerância das tendências, a proibição dos afectos; tudo amparado pela fisionomia das paixões, infames porque não contribuíam senão para iludir o tempo e esquecer a morte. Devoções, vícios, simples lágrimas de júbilo ou de luto, tudo resumia o grande tédio que é uma espécie de auréola do martírio para pequenas compleições.

Esses serões, aparentemente fúteis e decorridos em monotonia quase abacial, eram, no entanto, esperados com certo alvoroço. Às vezes deixavam um amargor de descontentamento, porque só traziam um debate a propósito de literatura, coisa que José Augusto parecia de repente abominar. Travavam diálogos bruscos, alterados, pelo gosto de se contradizerem e expandirem uma inimizade que, doutra maneira, não eram capazes de declarar. 

 

Agustina Bessa-Luís – Fanny Owen (1979)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

in https://henricartoon.pt/o-mau-exemplo-1567206

 

back to 92

22.09.22

Pelas contas dos meus entrevistados, o número de pessoal colocado nos serviços de saúde caiu a pique ao longo dos últimos anos. «Há dias estive a remexer uns papéis que tinha guardado, uns folhetos que se distribuíam à população.» É daí que vêm alguns dados lançados para a mesa por João. «Sabe quantos médicos estavam colocados no Centro de Saúde do Algueirão em 2002? Trinta e um. Sabe quantos é que há agora? Onze.» Em relação ao número de administrativos, há cerca de década e meia, havia dois a três elementos por piso a dar apoio aos consultórios (o centro de saúde funciona num antigo prédio de habitação com seis andares). Atualmente, o atendimento é feito exclusivamente no rés-do-chão do edifício, com três ou quatro elementos ao todo. «Havia tanta gente em cada um dos pisos como agora há na totalidade. Não dá para prestar um bom serviço. Já para nem falar no desgaste de quem passa o dia a atender [...] A qualidade do serviço é tão parca e insatisfatória, o número de pessoas em espera nas salas é tão elevado, que qualquer movimento por parte dos funcionários dá azo a burburinho na sala. «Se alguém se levanta para arrumar um papel, há logo quem mande a boca: "Olha, aquela já vai passear", garante Lurdes, que acha que o estado actual das coisas não serve a ninguém, nem a quem precisa dos cuidados de saúde nem a quem trabalha nos respectivos centros. Mais: com a contenção das contratações, proliferam os outsourcings, os recibos verdes, as pessoas trazidas pelas empresas de trabalho temporário, que nem sequer têm acesso a formação e que são imediatamente colocadas a atender ao público. "Olha, aprendes com o do lado", é isso que lhes dizem. Eles não têm culpa, é preciso tempo para ganhar experiência no atendimento, e isto também é sinal de degradação, no fundo são jogados aos lobos e cada um que se desenrasque.»

Se não houver uma estrutura bem organizada, com meios disponíveis e vontade de fazer a diferença, não pode haver um bom atendimento [...] «Não estou a falar de mais dinheiro para nós, estou a falar de mais pessoal, de apoio por parte dos directores, de quem estava acima de nós. Tivemos um director que nos ajudou a fazer umas obras no centro de saúde ao fim-de-semana, mudar balcões, partir uma parede... Éramos nós que as fazíamos ao fim-de-semana, sim, a gente gostava de melhorar as coisas, avançávamos as coisas por nós, não ficávamos à espera. E nessa ocasião tivemos esse director que deu uma ajuda nas obras e até participou nas limpezas. Sentíamos que tínhamos apoio. Estou a falar de 91/92. Depois, tudo isso acabou. »

 

Pedro Vieira – Em que posso ser útil? (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pedro Vieira (2021)

 

 

tempos [emperrados]

05.05.22

[...] uma pesquisa que correlacionou os níveis agregados de preconceito implícito em 1400 condados dos Estados Unidos com a proporção de escravos em cada condado, de acordo com o censo de 1860. Como previsto, quanto maior a dependência dos condados relativamente ao trabalho escravo em 1860, mais elevados os níveis de preconceito implícito em 2014 (150 anos depois).

 

Jorge Vala  – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

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in Mídia NINJA - via @jeffportela #racismo | Facebook

bentos traficantes

30.03.22

(A propósito disto e disto.)

 

Em São Bento juntavam-se os traficantes de todas as províncias - dizia ele. «Portugal, no gozo duma podre tranquilidade, não sai do marasmo vergonhoso da sua cadência, hipocritamente desmentida por charlatães, incapazes de administrarem uma aldeia», escrevia no Porto e Carta, em Março de 1855.

 

Agustina Bessa-Luís – Fanny Owen (1979)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

in https://somdorock.comunidades.net/serrabulho-revelam-capa-de-porntugal

 

[da série] cuidado, esta gente vota (V)

11.03.22

«Pode ser um trabalho chato às vezes, até porque o cliente português é muito picky. Implica com muitas coisas, e não estou a falar das "personalidades". O pior cliente é aquele que vem com o dinheirinho contado, que conta os trocos todos... já para não falar dos viens, dos portugueses-franceses... Jean Pierre, vien ici, seu cabrão. Esses são os piores de todos.»

 

Pedro Vieira – Em que posso ser útil? (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pedro Vieira (2021)

 

 

espelhos cegos

18.02.22

[...] o preconceito está mais interiorizado e escapa mais ao controlo consciente do que aquilo que geralmente pensamos.

 

Jorge Vala  – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

 

estado da n[eg]ação

17.02.22

Um bom exemplo de que esta crença na superioridade natural de uns grupos relativamente a outros está viva e é partilhada por um número significativo de europeus encontra expressão no facto de cerca de 30% desta população acreditar que «algumas raças ou grupos étnicos nascem menos inteligentes do que outros» e também que «nascem mais trabalhadores do que outros», segundo dados do Inquérito Social Europeu (European Social Survey 7, 2014-2015) [...] Portugal, a Estónia e a República Checa são os países onde um maior número de pessoas expressou adesão à crença de que há, por natureza, grupos inferiores e grupos superiores quanto às características que definem os humanos. Ou seja, Portugal encontra-se entre os países que manifestaram um índice de racismo mais elevado. Por sua vez, a Suécia, a Holanda e a Noruega são os países onde menos pessoas manifestam de forma aberta adesão a essas mesmas crenças [...] Todavia, estes dados mostram também que o racismo está longe de ser hoje uma ideologia consensual na Europa, como o foi antes da II Guerra Mundial. Hoje, estas crenças não são partilhadas pela maioria dos Europeus e são objeto de debate público e político.

No que respeita a Portugal, os resultados apresentados podem parecer surpreendentes e são difíceis de aceitar pelas elites políticas, por comentadores ou redes intelectuais, mas são dados que já haviam sido anunciados num inquérito publicado em 1999 e num outro de 2011. Neste último estudo, comparou-se Portugal com outros oito países europeus. De novo com base em amostras representativas, perguntávamos, entre outros indicadores, qual o grau de concordância com a seguinte frase: «Algumas raças são mais dotadas do que outras.» Os resultados obtidos evidenciam que na Alemanha, em França, no Reino Unido, na Holanda e em Itália menos de 50% dos inquiridos expressaram concordância com aquele indicador de racismo. Em Portugal, na Polónia e na Hungria essas percentagens crescem para valores iguais ou superiores a 50% [...] Muito importante, os inquiridos [...] também mostram disponibilidade para discriminar ou aceitar a discriminação racial em diversos planos da vida social e política, como a oposição à entrada de imigrantes percebidos como tendo outra raça, na oposição a leis antirracistas ou a opção por critérios etnicistas na seleção de imigrantes.

Mais recentemente, já em 2019/2020, o European Social Survey - Portugal voltou a diagnosticar a crença dos Portugueses na «superioridade natural de umas raças ou grupos étnicos relativamente a outros». Usando as  mesmas proposições do European Social Survey 7, recorreu-se agora não a uma escala de resposta dicotómica (sim/não), que poderia ter produzido enviesamentos nas respostas anteriores, mas a uma escala que ia de «totalmente de acordo» a «totalmente em desacordo», permitindo uma gradação dos graus de acordo e desacordo. Os resultados obtidos, agora apenas em Portugal, confirmam os estudos precedentes: mais de 40% dos inquiridos partilha a crença na superioridade natural de «umas raças relativamente a outras», ou seja, expressam racismo biológico.

 

Jorge Vala  – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)