então diante de mim
Eu perdi a vez de ser simples,
perdi a vez feliz de ignorar,
perdi a sábia ignorância,
perdi a graça de não saber.
Deixei passar a vez de ir na corrente
e de ser como toda a gente
às carambolas da sorte.
Eu perdi a vez de ser analfabeto,
esse segredo para não ser doutor
e para não saber também
o que as letras sabem
do mundo e de mim.
(...) ser ignorante não dói
não dói tanto como não ignorar!
Eu deixei passar a vez de ir na onda
e de ter o entendimento repartido pelos mais,
começaram por ensinar-me as letras
e as letras acabaram por dar comigo
e eu vi-me então diante de mim
despegado da onda e da corrente
diferente de toda a gente
independente da multidão.
José de Almada Negreiros, SEGUNDA MANHÃ in AS QUATRO MANHÃS
Poemas Escolhidos José de Almada Negreiros - Assírio & Alvim | Porto Editora 2016