No princípio dos anos 80, o Bairro Alto onde o fado ainda é vadio e transpira de becos e ruas, desperta do seu sonho noturno de chulos e putas velhas de tetas imensas, mais as amas dos seus filhos na rua das Gáveas, as casas de passe, as redações de jornais, lado a lado com casas pobres e casebres, palácios decrépitos, vazios ou vagamente habitados e igrejas transformadas em esquadras de polícia, conventos herméticos de muros altíssimos, de onde assomam palmeiras e ciprestres, os adelos, humildes antepassados de antiquários, e as omnipresentes leitarias e tascas onde se come bem por pouco dinheiro.
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
A Borralheira, que era tão boa quanto bela, fez as irmãs virem viver para o palácio e casou-as no próprio dia com dois grandes senhores da corte.
Moralidade:
A beleza é para o sexo fraco um raro tesouro, que nunca nos cansamos de admirar; mas aquilo a que se chama bom feitio é sem preço e é bem mais valioso. Foi isto que a madrinha ensinou à Borralheira ao educá-la e instruí-la, tanto e tão bem que dela fez uma rainha. Belas, este dom vale mais do que estar-se bem penteada; para se prender um coração e conquistá-lo, o bom feitio é o verdadeiro dom das fadas: sem ele nada se pode, com ele tudo se consegue.
Outra moralidade:
É sem dúvida uma grande vantagem ter espírito e coragem, uma boa nascença e bom senso, assim como outros talentos semelhantes, de que se recebe do Céu uma quota-parte; mas, tendo-se embora tais talentos, não conseguirá fazê-los valer para obter sucesso na vida quem não tiver padrinhos ou madrinhas.
Francisco Vaz da Silva – Gata Borralheira e Contos Similares (2011) Círculo de Leitores e Temas e Debates (2011)
Mal o barco foi avistado, o rei fez-se conduzir ao porto numa carruagem. Assim que viu a noiva, deixou para trás toda a tristeza. Depois foi para o palácio organizar uma grande festa de casamento que durou duas semanas. Quando esta terminou, o rei foi viajar pelo reino para recolher impostos.
Francisco Vaz da Silva – Gata Borralheira e Contos Similares (2011) Círculo de Leitores e Temas e Debates (2011)
O frade sineiro anda ralado - os quartos de hora deixaram de soar na torre Sul do Convento, que as meias horas já se calaram misteriosamente dias atrás. Frei José dos Mártires desmontou o cilindro número quatro e não lhe encontrou defeito, inspeccionou o mecanismo do relógio e até arriscou equilíbrios perigosos para verificar se os martelos interiores e exteriores dos sinos estavam bem fixos. E nada. Os quartos de hora perderam a cantilena, o que muito desgosta o frade. Não crê que haja remédio sem a ajuda dos artífices das oficinas de Guilherme Withlock de Antuérpia, se ainda existirem. Eles construíram e montaram, vai para oitenta anos, os 46 carrilhões da torre Norte e os 47 da torre Sul, mais os mecanismos de relojoaria, e teclado para os sinos manuais e os cilindros dos mecânicos. Só que não há sequer a quem requerer a reparação e, enquanto os franceses não se forem embora, ninguém vai ralar-se além dele mesmo por ficar o tempo reduzido a um minuete de hora a hora (...) Mas o frade sineiro não se conforma. Além de se imaginar guardião do tempo, acha que o vigia melhor com música do que sem ela. E torna a verificar o cilindro preguiçoso, endireita-lhe uns dentes que lhe pareceram empenados e, da experiência, resultam duas débeis notas, um dó e um mi espaçados, melhor que nada.
O tempo, esse, não se altera. Corre na espera lenta que Deus ou os ingleses expulsem os invasores e tragam um rei bom católico que reponha a paz pôdre e conserve o santo analfabetismo do povo. Mesmo que tenham secado as fontes do ouro do Brasil, talvez se arranjem uns cruzados para se repôr o tempo por música (...)
Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)
O capitão de Intendência Octave Rigault é um maníaco das cifras. O Palácio-Convento tornou-se para ele um desafio e uma guloseima. Andou dois dias de nariz no ar, a rondá-lo, contornando-o lentamente, a determinar numericamente a sua vastidão imponente e desengraçada, calculando a passos, com pequena margem de erro, 40 000 metros quadrados monumentais e contando, como maior cuidado e interesse, as suas 4500 portas e janelas (...)
Estando excluído o interesse do curioso capitão da Intendência pela pureza dos mármores e pela perfeição clássica das colunas jónicas do vestíbulo, dos capitéis corínticos e das admiráveis figuras esculpidas por Bernini, Corsini, Ludovici e Bracci, imagina-se facilmente o prazer que ele teria se pudesse alinhar outros números no seu caderno de notas, que acrescentassem à avaliação de tanta monumentalidade os 50 000 trabalhadores que ali se esforçavam em 1729 pela grandeza do voto d'El Rei dom João V. Para não falar dos 1300 bois, dos 7000 soldados que mantinham a ordem nessa cidade artificial paga com o ouro do Brasil, e dos 1383 operários mortos, durante os primeiros 13 anos da obra de agradecimento ao Sublime Arquitecto por ter dado um filho a Sua Majestade.
Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)