"Tinha duas obrigações a cumprir: a discrição, que devia elevar-se ao nível da invisibilidade, e o número de reparações a efectuar (...).
O Champ-de-Mars era um terreno de caça excelente. Podiam ali encontrar-se, a qualquer hora do dia ou da noite, casais de apaixonados de todas as nacionalidades.
Decidi observar antes de agir, registando tudo num bloco-notas.
Durante a elaboração deste inventário de reparações possíveis, apercebi-me de que os sentimentos exerciam sobre mim uma atracção irresistível, pelo que decidi, com o acordo dos meus superiores hierárquicos, especializar-me na reparação da tristeza.
Graças a esta escolha, a minha viagem à capital tornou-se uma sorte grande: os problemas amorosos contemporâneos são apaixonantes e, embora isso possa denotar um certo snobismo da minha parte, a verdade é que estava radiante por fazer o meu estágio no centro do problema, na confluência do imaginário colectivo e dos mitos contemporâneos, na capital alegórica do Amor, Paris.
Era formidável verificar até que ponto os homens e as mulheres comunicavam mal e tinham deixado de se ouvir a si próprios.
Os casos de tristeza mais frequentes deviam-se a variados estados de solidão profunda e infinita. O medo, a incapacidade de concretizar aquilo que se imagina, de transformar os desejos em faculdades através da força de vontade pareceram-se ser sintomas muito correntes.
Vigilante e curioso, ia anotando tudo no meu bloco, desde a mais vil das traições à mais banal das frustrações. Nenhum problema de coração deve ser descurado; para se desempenhar funções como as minhas, é importante estar-se consciente de que a infelicidade é relativa. Um arranhão na alma pode ser tão doloroso e perigoso como uma ferida grave. Certos desgostos amorosos podem destruir uma vida e, em contrapartida, alguns verdadeiros dramas podem construir uma existência.
A verdade é que, à força de tanto observar, elaborei de forma bastante rápida as bases teóricas da técnica que ia adoptar: conseguir alterar a percepção da vida por parte do sujeito sofredor.
A partir do momento em que vemos a vida de outra maneira, é-nos possível transformar a realidade.
Isto pode parecer simplista, mas funciona sempre, basta que tenhamos coragem.
Infelizmente, os humanos não desenvolveram essa arma (....)."
Hélène Guétary – O Homenzinho Azul (1999 by Librairie Arthème Fayard)
Tradução de Fernanda Soares
Printer Portuguesa para Círculo de Leitores (Dezembro,2001)