Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

girando em frente

14.09.23

Assim que começou a limpar o Parlamento - há tantos anos que já nem se lembra -, depois de ter trabalhado num lar, a mulher de cabelos cinzentos a denunciar mais de meio século de vida pensou em despedir-se logo no primeiro mês. O motivo era simples: de tão grande que é a Assembleia da República, Feliciana Afonso sentia medo só de pensar que tinha de se deslocar de uns sítios para os outros sem saber o caminho. O tempo fez questão de lhe ensinar os percursos e as contas para pagar ao final do mês acabaram por pesar mais do que qualquer insegurança. [...]

Durante a pandemia, deixou de se preocupar com as incertezas. Nunca se preocupou muito com o futuro, agora ainda menos. Fechou os olhos e teve «fé em Deus». Só.

Se tiver de ter tenho, se não tiver de ter não tenho. Mesmo quando estava no centro de dia não tinha medo de nada. Sou uma mulher de trabalho e não temos de ter medo de nada. Não, não. Nem é por limpar o chão que sou menos que os outros. Olhe, tanto me pega a mim, como ao senhor primeiro-ministro. 

 

Rita Pereira Carvalho  – As Invisíveis, Histórias sobre o trabalho de limpeza (2022)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Rita Pereira Carvalho (2022)

 

 

never

30.05.23

Os homens eram inocentes e desprecavidos, se tomavam a fraqueza duma mulher como a prova da soberania deles. 

 

Agustina Bessa-Luís – Fanny Owen (1979)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

à deux pas de chez nous

16.03.22

Nessa altura soube que não me tinha enganado [...] não era um marginal nem um assassino, era uma pessoa que tinha saído da vida. 

 

Marguerite Duras – Olhos Azuis, Cabelo Preto (1986)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

La concierge me dit qu'ils ne sont bons à rien
Qu'ils n'ont pas les manières de chrétiens
Qu'ils respirent notre air et mangent notre pain
À deux pas de chez moi allez voir mes voisins
C'est vrai que nos grands-pères étaient des gens de bien
Qu'ils avaient des manières de chrétiens
Quand ils ont pris la terre d'Afrique aux Africains
À deux pas de chez moi allez voir mes voisins

 

 

ambivalência atávica

19.04.17

Sobre o acaso, a necessidade e o mérito 

1. Não sei se a natureza lusitana integra uma "cultura do fatalismo", mas sei sabemos todos que abundam, na história do pensamento e das outras artes nacionais, registos individuais e colectivos exemplares de um pendor generalizado e ambivalente: ora para a contemplação da vida como sucessão de fatalismos irremediáveis; ora como convocação para o afrontamento de desafios irrenunciáveis. 

Entre os polos desta ambivalência atávica se desenvolvem os comportamentos característicos da nossa matriz genética: a rendição ao desalento alimentado pela "força do destino", ou a motivação de contornos quase místicos (ou míticos?), que é fonte do potencial criativo, da determinação e da coragem para enfrentar os desafios mais exigentes. Dito de outro modo: a submissão às arbitrariedades do destino, que espelham as virtudes do acaso; ou o engenho e a determinação, que superam as carências de que é feita a necessidade. 

2. Tenho para mim que esta natureza "bipolar" do ser português é a chave para a compreensão de algumas singularidades do nosso comportamento histórico; mas é ainda, e sobretudo, o modelo a partir do qual poderia ser mais enriquecedor o exercício de pensarmos o nosso presente para melhor projectarmos o nosso futuro. 

Acontece que o raciocínio estratégico não é uma prática habitual, nem sequer ocasional, da nossa natureza. Somos muito melhores cronistas (ralatores do que foi) e demagogos (especulando acerca do que, e de como, outros deveriam ter feito) do que actores rsponsáveis pela construção, hoje, do futuro que é já amanhã - coisa entretanto bem diferente do que é sermos visionários: pecadilho mais oriundo da paixão que da lucidez. 

 

 

José de Oliveira Guia - Presidente da Direção da ANEME

in Editorial CINFormando nº 61 - 1º trimestre de 2017