Num primeiro momento, a tendência é para generalizar e pensar que crianças com 7 anos têm a mesma rotina e vidas semelhantes, divididas entre casa e escola. Mas depois escava-se na realidade e nem é preciso muito para se perceber que essa ideia não podia estar mais errada e que há crianças que não chegam a cumprir oito horas de sono. O filho de Elissangela acorda de madrugada, vai para a ama pouco depois das cinco da manhã e, de seguida, segue para a escola. Ao final do dia, a ama vai buscá-lo às aulas e, antes de jantar, Elissangela leva-o de volta para casa. Sempre assim, cinco dias por semana. Não é uma rotina instável, mas é um hábito cansativo. [...]
A história de Diogo é, no entanto, diferente. Esta criança faz um sacrifício que a maior parte das crianças, certamente, nunca conheceu nem imagina: acorda de madrugada para acompanhar a mãe até ao trabalho, acabando por sair da cama umas cinco horas antes de as aulas começarem. Se alguém for distraído e encontrar Diogo no autocarro 726 da Carris, com destino ao Marquês de Pombal, por volta das cinco e meia da manhã, pode nem se aperceber de que ele acordou cedo e de que, sendo uma criança, não deveria estar ali àquela hora. Mas este miúdo leva consigo uma felicidade comparável com aquela que provavelmente os seus amigos têm ao sair das aulas [...]
Sentado nos últimos bancos estava Diogo. Para esta criança, o relógio parece ter mais horas. «Acorda todos os dias às quatro da manhã e sempre bem-disposto [...] », [...] É assim todos os dias, e todos os dias Diogo acorda com a mesma energia.
Rita Pereira Carvalho –As Invisíveis, Histórias sobre o trabalho de limpeza(2022)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Rita Pereira Carvalho (2022)
Ao lado da mãe Ana, caminham outras mulheres que vão também fazer limpezas e vêm do mesmo sítio. Ouve-se o riso no meio do silêncio, fruto das respostas que Diogo atira. Antes de entrar na escola, o menino ainda tem tempo para acompanhar a mãe enquanto esta limpa mesas, cadeiras, casas de banho, chão e secretárias de uma instituição bancária na zona do Rato, perto da estação de metro. Não interfere no trabalho, é até uma companhia, e nunca houve oposição por parte da empresa para a qual a mãe trabalha há cerca de 20 anos.
Já de dia, quando sai do Rato, às oito da manhã, Ana leva o filho à escola, que não fica muito longe dali. E à tarde, como se por magia nunca tivesse abandonado o portão da escola, lá está ela novamente para o levar para casa. Chegada a noite, os trabalhos de casa são feitos, garantia dada pela mãe. «Vem da escola, eu digo-lhe "faz os TPC, lê esse livro" [...]
Ana, Elissangela ou Carol sempre foram obrigadas a adaptar os seus horários em função dos filhos e a encontrar alternativas para conseguirem equilibrar a balança do trabalho e da família. Algumas crianças vão com as mães para o local de trabalho, outras ficam com as amas, ou nas creches, e há ainda quem recorra à família. Em qualquer uma das opções, grande parte das crianças acorda de madrugada, poucos minutos depois das mães. No final da história, estas mulheres correm o dia inteiro pelos filhos e para lhes poderem dar alguma coisa.
Rita Pereira Carvalho –As Invisíveis, Histórias sobre o trabalho de limpeza(2022)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Rita Pereira Carvalho (2022)
Tem 19 anos e, além de ser a mulher mais jovem daquelas noites, foi a única que não quis que o seu nome fosse identificado. Escolheu ser Vanessa [...]
São cinco da manhã e Vanessa está no meio de outras mulheres [...] Tem outras coisas que lhe ocupam a cabeça. A filha que deixou em casa de uma amiga é uma delas. Está constipada. [...] Todos os cêntimos do seu ordenado mínimo contam e, no fim do mês, o dinheiro não estica para pagar a casa, contas, creche e outras despesas com a filha, que não tem o pai presente [...]
A entrada de Vanessa no mundo das limpezas coincidiu com a altura em que teve a filha, há um ano. Não tinha alternativa senão encontrar um emprego o quanto antes [...]
«Nunca fui boa na escola, nunca me interessei pela escola, se soubesse o que sei hoje tinha sido diferente, não faltava às aulas e percebia que aquilo me podia dar dar alguma coisa. Mas com 15 anos não pensamos e depois fiquei grávida, tinha de arranjar dinheiro para ter no final do mês. Acha que alguém me queria noutro lado sem o 12º ano? Só a limpar escadas», conta. Hoje, olha para trás com pena de não ter feito mais. Aceita o que tem agora com alguma raiva, mas com a certeza de que é para a filha que está a fazer o sacrifício de ter um trabalho do qual não gosta. «Não quero que tenha o mesmo futuro que eu», repete. [...]
Antes de entrar no autocarro e desaparecer, as palavras de Vanessa são perentórias: «Eu é que me meti nisto.»
Rita Pereira Carvalho – As Invisíveis, Histórias sobre o trabalho de limpeza (2022)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Rita Pereira Carvalho (2022)
John Francis Bongiovi, Jr. (Perth Amboy, 2 de março de 1962)