Se escrevo ou leio ou desenho ou pinto, logo me sinto tão atrasado no que devo à eternidade, que começo a empurrar pra diante o tempo e empurro-o, empurro-o à bruta como empurra um atrasado, até que cansado me julgo satisfeito. (Tão gémeos são a fadiga e a satisfação!) Em troca, se vou por aí sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo, compreendo tão bem o que não me diz respeito, sinto-me tão chefe do que está fora de mim, dou conselhos tão bíblicos aos aflitos de uma aflição que não é minha, que, sinceramente, não sei qual é melhor: se estar sozinho em casa a dar à manivela da vida, se ir por aí e ser Rei de tudo o que não é meu.
José de Almada Negreiros, Momento de Poesia (Lisboa, novembro 1939)
Poemas Escolhidos José de Almada Negreiros - Assírio & Alvim | Porto Editora 2016