dúvidas para debaixo do tapete (ou como ser de bem e covarde)
dois casos deram origem a um aviso formal a Aristides de Sousa Mendes: «Qualquer nova falta ou infração nesta matéria será havida por desobediência e dará lugar a procedimento disciplinar em que não poderá deixar de ter-se em conta que são repetidos os atos de V.Sa. que motivam advertências e repreensões.» Era um aviso bem claro que estabelecia as regras do jogo: Salazar e o regime queriam continuar a seguir a Circular 14, portanto, a perseguir os judeus; a bloquear-lhes o caminho para a salvação e impedindo-os de escapar a um assassínio em massa, sem «cônsules ou indivíduos fora do seu estado normal», a incomodarem publicamente esse desígnio.
Pelo seu lado, Aristides decidiu continuar a seguir a sua consciência. O seu jogo seria deixar-se estar no seu posto como cônsul durante o mais longo espaço de tempo possível, e sempre que tivesse ocasião, passar o maior número de vistos, dando pelo menos a possibilidade de sobreviver aos que lhe aparecessem pela frente. A atitude de Aristides é clara: «Não participo em chacinas, por isso desobedeço a Salazar!» Aristides identifica sem rodeios Salazar com a força bruta de Hitler e do nazismo no que diz respeito aos judeus, e é disso que o acusa com esta frase. A sociedade portuguesa, prefere, para ficar bem com a sua consciência, olhar para o lado, e vai escolher vergar-se ao poder, evitando mais tempos de incerteza como os vividos antes de Portugal ter Salazar e o Estado Novo. Ninguém queria uma "democracia" ou uma república cheia de dúvidas.
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto
Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)