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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

judeias à beira mar plantadas (ou venenos II)

04.05.21

Presença ausente, intratável e carinhoso, dado a explosões repentinas e a silêncios densos, mas de coração lavado. Incapaz de guardar rancores, alimentar ódios, estimular querelas. Mas cheio de uma inquestionável autoridade que o levava a confrontar até o maior dos seus amores, a própria mãe. O facto é que toda a gente o respeitava muito. Até o pai.

- Mas se tivesses de dizer alguma coisa, dizia. Não ia lavar as mãos ao rio. Uma vez virou-se para a minha mãe, e disse-lhe, você é uma beata. O que anda você a fazer na igreja? É uma beata, isso é um beatismo. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

sagrado

03.04.17

Uma vez - contam os biógrafos do Profeta - ao ditar ao escrita Abdullah, Maomé deixou uma frase a meio. O escriba, instintivamente, sugeriu-lhe a conclusão. Distraído o Profeta aceitou como palavra divina o que dissera Abdullah. Este facto escandalizou o escriba, que abandonou o Profeta e perdeu a fé.

Estava errado. A organização da frase, em última análise, era da responsabilidade dele; era ele que devia ajustar contas com a coerência interna da língua escrita, com a gramática e a sintaxe, para captar a fluidez de um pensamento que se expande para fora de todas as línguas antes de se tornar palavra, e de uma palavra particularmente fluida como é de um Profeta. A colaboração do escriba era necessária a Alá, desde que decidira exprimir-se num texto escrito. Maomé sabia-o e dava ao escriba o privilégio de concluir as frases; mas Abdullah não tinha consciência dos poderes de que estava investido. Perdeu a fé em Alá porque lhe faltava a fé na escrita, e em si próprio como operador da escrita. 

 

 

Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)