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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

[há muito que] já estamos em ditadura

04.04.23

A Alice Vieira disse que a reescrita de obras clássicas é censura e que é preciso ter em conta o contexto histórico em que foram escritas. Totalmente de acordo. Também eu o digo.
A questão é que este cancelamento não toca apenas aos clássicos.
O Afonso Reis Cabral ,um dos escritores mais talentosos no panorama literário europeu, viu dois dos seus livros a terem a sua edição nos USA negados porque no caso do O Meu Irmão, um dos personagens que tem síndrome de Down poderia levantar questões e no outro, Pão de Açúcar, foi considerado que um homem cis a escrever sobre um transexual poderia também levantar outro tipo de questões. Foi senão me engano há dois/três anos.
Isto é o nosso tempo e não precisa ter em conta um certo contexto do passado. É aqui e agora.
O que é certo é que aos leitores americanos foi negado acesso a dois livros extraordinários (mérito reconhecido até pelo mesmo editor americano que não os edita pelas razões anteriormente indicadas) porque outros argumentos se levantaram além da mera qualidade literária das obras de ficção em causa. As personagens, o escritor, são de repente também julgados perante o altar de uma nova moralidade e de uma espécie de preocupação pelos leitores que acéfalos têm de ser resguardados da literatura.
Citando a Alice Vieira: isto é censura e infelizmente para os leitores americanos o Afonso Reis Cabral foi cancelado.
Por cá, onde a liberdade de escrever, editar e ler o Afonso Reis Cabral tem de ser protegida, continuaremos a editar com honra e alegria, os livros do Afonso, com os personagens que melhor entender e quando e sempre que ele entender.


Pedro Sobral
Presidente | Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL)

 

 

 

bidonvilles e os bolsos dos mesmos do costume

07.03.23

Terminada que foi a polémica da transferência temporária dos migrantes asiáticos do Litoral Alentejano para as instalações de um empreendimento turístico, o assunto caiu no esquecimento. Nunca cheguei a perceber se aquilo que interessava aos órgãos de comunicação social, era a salvaguarda da integridade sanitária daqueles seres humanos, ou antes o burburinho gerado em torno da transferência para o Zmar.

Uma coisa, no entanto, ficou clara: o que os proprietários do empreendimento turístico queriam era apenas e só, dinheiro. A este propósito a SIC Noticias, dava conta em 1 de junho, que: “Trinta e quatro habitações foram cedidas ao Estado temporariamente e mediante o pagamento de 100 euros mais IVA por dia, estejam ou não ocupadas, e com retroativos a 29 de abril, data da requisição civil”. A partir de então, silêncio total.

Entretanto, aqueles homens e mulheres continuam a pernoitar em condições miseráveis em casas degradadas e em barracões feitos para alojar alfaias agrícolas e por vezes gado. Parte dos seus magros salários vão direitinho para o bolso de redes mafiosas (sim, mafiosas, com todas as letras), que com base em processos ignóbeis, apropriam-se de uma parte substancial do suor destes trabalhadores.

Aliás, todos lucram, menos os próprios. Desde logo as ditas redes mafiosas, assim como os donos dos “alojamentos”. Mas lucram também as empresas de trabalho temporário, os escritórios de advogados sem escrúpulos que ajudam a contornar uma permissiva legislação do trabalho. E lucram as empresas agrícolas, que assim têm à mão, e na mão, um exército de explorados que estão impedidos de poder beneficiar por inteiro de um direito elementar: o seu salário.

[...]

O Alentejo e o país precisam de mão de obra nalgumas áreas da atividade económica. A agricultura é claramente uma delas. Mas não podemos ter cá essas pessoas num quadro de indignidade total. A forma como esses seres humanos estão em Portugal, é demonstrativo de uma insensibilidade social, reveladora da nossa pequenez cívica.

[...]

Quando há anos via na televisão os Bidonvilles da periferia de Paris, pensava que tal nunca seria possível no Portugal do séc. XXI. O tempo encarregou-se de me trazer à razão [...]

 

Miguel Bento in https://www.oatual.pt/magazine/dos-bidonville-de-paris-as-estufas-de-odemira