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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

dia da criança

01.06.23

Num primeiro momento, a tendência é para generalizar e pensar que crianças com 7 anos têm a mesma rotina e vidas semelhantes, divididas entre casa e escola. Mas depois escava-se na realidade e nem é preciso muito para se perceber que essa ideia não podia estar mais errada e que há crianças que não chegam a cumprir oito horas de sono. O filho de Elissangela acorda de madrugada, vai para a ama pouco depois das cinco da manhã e, de seguida, segue para a escola. Ao final do dia, a ama vai buscá-lo às aulas e, antes de jantar, Elissangela leva-o de volta para casa. Sempre assim, cinco dias por semana. Não é uma rotina instável, mas é um hábito cansativo. [...]

A história de Diogo é, no entanto, diferente. Esta criança faz um sacrifício que a maior parte das crianças, certamente, nunca conheceu nem imagina: acorda de madrugada para acompanhar a mãe até ao trabalho, acabando por sair da cama umas cinco horas antes de as aulas começarem. Se alguém for distraído e encontrar Diogo no autocarro 726 da Carris, com destino ao Marquês de Pombal, por volta das cinco e meia da manhã, pode nem se aperceber de que ele acordou cedo e de que, sendo uma criança, não deveria estar ali àquela hora. Mas este miúdo leva consigo uma felicidade comparável com aquela que provavelmente os seus amigos têm ao sair das aulas [...] 

Sentado nos últimos bancos estava Diogo. Para esta criança, o relógio parece ter mais horas. «Acorda todos os dias às quatro da manhã e sempre bem-disposto [...] », [...] É assim todos os dias, e todos os dias Diogo acorda com a mesma energia. 

 

Rita Pereira Carvalho – As Invisíveis, Histórias sobre o trabalho de limpeza (2022)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Rita Pereira Carvalho (2022)

 

 

mas as mães

07.01.19

A chegada de um pequeno destacamento de SS alemães deveria ter levantado dúvidas até mesmo nos optimistas; todavia, conseguimos interpretar de diferentes formas esta novidade, sem tirar a mais óbvia das consequências (...) O comissário italiano, portanto, deu ordem para que todos os serviços continuassem a funcionar até ao anúncio definitivo; a cozinha continuou, pois, em actividade, os faxinas da limpeza trabalharam como de costume, e até os professores da pequena escola deram aulas à tarde, como todos os dias. Mas as crianças naquela tarde não tiveram trabalhos para casa.

Caiu a noite, uma noite tal que se percebeu que olhos humanos não a poderiam presenciar e sobreviver. Todos o sentiram: nenhum dos guardas, nem italianos nem alemães, teve a coragem de ir ver o que é que faziam os homens quando sabiam que iam morrer. 

Cada um despediu-se da vida da forma que lhe era mais própria. Alguns rezaram, ouros beberam além do normal, outros inebriaram-se com a última nefanda paixão. Mas as mães ficaram acordadas para preparar com amoroso cuidado a comida para a viagem, e lavaram os filhos, e fizeram as malas, e de madrugada os arames farpados estavam cheios de roupas de crianças estendidas a secar ao vento; e não se esqueceram das fraldas, dos brinquedos, das almofadas e das cem pequenas coisas que elas bem conhecem, e das quais os filhos sempre precisam. Não fariam também o mesmo? Se amanhã esperassem ser mortos com o vosso filho, não lhe davam hoje de comer? 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)