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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

02
Mar23

it's never too late

Cecília

Tem 19 anos e, além de ser a mulher mais jovem daquelas noites, foi a única que não quis que o seu nome fosse identificado. Escolheu ser Vanessa [...]

São cinco da manhã e Vanessa está no meio de outras mulheres [...] Tem outras coisas que lhe ocupam a cabeça. A filha que deixou em casa de uma amiga é uma delas. Está constipada. [...] Todos os cêntimos do seu ordenado mínimo contam e, no fim do mês, o dinheiro não estica para pagar a casa, contas, creche e outras despesas com a filha, que não tem o pai presente [...]

A entrada de Vanessa no mundo das limpezas coincidiu com a altura em que teve a filha, há um ano. Não tinha alternativa senão encontrar um emprego o quanto antes [...]

«Nunca fui boa na escola, nunca me interessei pela escola, se soubesse o que sei hoje tinha sido diferente, não faltava às aulas e percebia que aquilo me podia dar dar alguma coisa. Mas com 15 anos não pensamos e depois fiquei grávida, tinha de arranjar dinheiro para ter no final do mês. Acha que alguém me queria noutro lado sem o 12º ano? Só a limpar escadas», conta. Hoje, olha para trás com pena de não ter feito mais. Aceita o que tem agora com alguma raiva, mas com a certeza de que é para a filha que está a fazer o sacrifício de ter um trabalho do qual não gosta. «Não quero que tenha o mesmo futuro que eu», repete. [...] 

Antes de entrar no autocarro e desaparecer, as palavras de Vanessa são perentórias: «Eu é que me meti nisto.»

 

Rita Pereira Carvalho – As Invisíveis, Histórias sobre o trabalho de limpeza (2022)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Rita Pereira Carvalho (2022)

 

John Francis Bongiovi, Jr. (Perth Amboy, 2 de março de 1962)

 

24
Mar22

vírus imortais

Cecília

Pertencente a uma faixa etária muito mais baixa, Marcelo sentiu directamente os efeitos da pandemia no campo profissional, ficando com esse lado virado do avesso. Estando a trabalhar sem contrato na área de restauração, hotelaria e turismo, era de esperar que à calamidade de saúde pública se juntasse a calamidade laboral, carregada de dificuldades. «Perdi o meu emprego no restaurante, nunca mais tive clientes na minha experiência da Airbnb... fiquei sem rendimentos e fui forçado a fazer uns extras na construção civil.» Um mundo novo e desconhecido, no qual entrou por necessidade [...] Passados estes meses, Marcelo dá voz a uma frustração que vai um pouco mais além das contrariedades ao nível do trabalho e do ganhar a vida de todos os dias. «O que me magoa mais neste processo é o agravar da desigualdade social que já existia antes desta covid-19.» Sem grandes perspectivas no futuro imediato, de uma coisa Marcelo está convicto: «A incerteza e o medo são os piores vírus da nossa sociedade.»

 

Pedro Vieira – Em que posso ser útil? (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pedro Vieira (2021)

 

 

09
Mar22

levantai-vos

Cecília

... alguém comenta que as coisas têm sido ditas com tanta frequência, que basta uma palavra para que tudo fique dito.

 

Virginia Woolf – As Ondas (1931)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

04
Mar22

futuro[s] assassinado[s]

Cecília

Talvez que a vida não responda ao tratamento que lhe damos quando a seu respeito falamos.

 

Virginia Woolf – As Ondas (1931)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

in https://www.youtube.com/channel/UC7fWeaHhqgM4Ry-RMpM2YYw/community?lb=Ugkx-hJH2LtxRA_XG9RiezzS4qBFsLeoM7Fo

 

09
Fev22

puzzles

Cecília

Não há estudos sobre a aprendizagem da inferiorização por parte das crianças negras em Portugal, embora haja investigação sistemática sobre a aprendizagem e a expressão do preconceito por parte de crianças brancas. Contudo, uma pesquisa realizada no início deste milénio oferece várias pistas para compreender a perceção de discriminação e as suas consequências por parte de jovens negros. De uma forma muito breve, importa sublinhar que os jovens entrevistados nessa pesquisa expressaram um puzzle complexo de reações: uma autoestima pessoal ameaçada, uma identidade social positiva e uma elevada perceção de discriminação no campo económico e no campo do tratamento institucional, a par de uma orientação para a mudança social.

 

Jorge Vala – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

 

24
Jan22

céus pálidos

Cecília

«Volto a ver a rua do costume. O brilho da civilização como que se gastou. O céu apresenta-se escuro e polido como um osso de baleia. Contudo, há nele uma espécie de luz que tanto pode provir de um candeeiro como do alvorecer. Sinto uma espécie de agitação - algures, numa árvore baixa, os pardais chilreiam. Paira no ar a sensação de que o dia vai nascer. Não lhe chamaria alvorada. Qual o significado de uma alvorada na cidade para um homem velho, parado no meio da rua e a olhar meio tonto para o céu? A alvorada é uma espécie de empalidecer do céu; uma espécie de renovação. Um outro dia, uma outra sexta-feira, um outro vinte de Março, Janeiro ou Setembro. Um outro despertar geral. As estrelas recolhem-se e extinguem-se [...]»

 

Virginia Woolf – As Ondas (1931)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

18
Nov21

antecipando o frio do inverno

Cecília

Um mundo onde a ignorância é primavera

onde a alegria estremece deslumbrada 

 

António Ramos Rosa in O TEMPO - Obra Poética I

Assírio & Alvim (2018)

 

 

19
Jul21

o jogo do fogo das coisas que são

Cecília

Era 1h15m. Os jovens militares não compreendiam nada do que se passava. Pouco depois de terem formado, aparece-lhes à frente o tal capitão, que lhes faz um discurso bastante simples: «Há várias formas de Estado: Estados liberais, estados democráticos e... o estado a que "isto" chegou. Vamos fazer um golpe de estado. Só vem quem quer. Quem não quiser, não vem.»

Entre esses «bravos» há um cadete de segundo ciclo que dá pelo nome de Francisco Fernando de Moncada de Sousa Mendes. Tem 21 anos, e é neto de Aristides e de Angelina de Sousa Mendes. É meu primo em primeiro grau, e também ele conhece bem o drama vivido pela mãe, Clotilde, pelos avós e demais familiares. Claro que o jovem diz que sim, que quer viver este momento histórico [...]

Gosto de pensar que é mais do que mera coincidência o facto de, entre os 240 que saíram nessa noite da Escola Prática de Cavalaria de Santarém em viaturas blindadas para irem fazer o tal golpe de Estado a Lisboa, haver um descendente directo de Aristides de Sousa Mendes [...] Alguém terá mais tarde dito a Francisco Fernando que o acaso não existe, e que havia uma razão para ele se encontrar naquele preciso momento na Escola Prática de Cavalaria na especialidade de atirador de cavalaria... 

 

António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto
Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes  (2017)

 

 

16
Jun21

deixem passar

Cecília

Várias pessoas com quem contactei (algumas já falecidas), falaram-me desses momentos, inesquecíveis para quem os viveu. Como Henri Zvi Deutsch, jovem adolescente na altura, que me contou que os pais, fugidos da Alemanha, nem papéis tinham - com eles apenas traziam fé e esperança. Zvi Deutsch mencionou-me o tipo de vistos que vários autores consideram como únicos na história da diplomacia mundial e que o cônsul de Bordéus terá produzido às centenas. Tratava-se de um simples pedaço de papel onde Aristides (ou talvez um dos seus filhos) escrevia o seguinte texto: «O governo português pede às autoridades francesas e espanholas que deixem passar o portador, ou portadores, deste visto de trânsito temporário. Trata-se de um refugiado, ou refugiados, do conflito armado a decorrer na Europa, a caminho de Portugal.» 

 

António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto
Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes  (2017)

 

 

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