Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

vivam e sejam

01.04.18

Vivam, apenas.

 

Sejam bons como o sol.

Livres como o vento.

Naturais como as flores.

 

Imitem as árvores dos caminhos

que dão flores e frutos

sem complicações.

 

Mas não queiram convencer os cardos

a transformar os espinhos

em rosas e canções.

 

E principalmente não pensem na Morte. 

Não sofram por causa dos cadáveres

que só são belos

quando se desenham na terra em flores.

 

Vivam, apenas.

A Morte é para os mortos! 

 

 

José Gomes Ferreira in Comício

 

 

 

José Gomes Ferreira – Poeta Militante I

Círculo de Leitores (2003)

 

 

civilização burguesa

26.03.18

(Ódio à civilização burguesa.)

 

Esta gente parece ter alma

porque a música está a tocar. 

 

 

José Gomes Ferreira in Cabaré

 

 

José Gomes Ferreira – Poeta Militante I

Círculo de Leitores (2003)

 

 

 

The Taxi Dancers of the Roaring Twenties had a hard job  

k. Madison Moore

 

penso [...] logo existo

21.03.18

(Um momento de filosofia barata.)

 

Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,

o que importa é isto:

- Penso nos outros.

Logo existo. 

 

 

José Gomes Ferreira in Eléctrico

 

 

 

José Gomes Ferreira – Poeta Militante I

Círculo de Leitores (2003)

puta a um canto

07.03.18

V

 

(À infalível prostituta, a um canto)

 

Se eu quisesse, tornava-te humana.

Fazia-te chorar

as lágrimas que trago em mim. 

 

E beijava-te a boca

a menina que ainda existe 

no fundo dos teus olhos. 

 

Mas não quero. 

 

Prefiro ver no teu corpo 

o desenho da minha indiferença.

E sentir-te na pele

tudo o que há de vil na minh'alma

- e já não cabe em mim. 

 

José Gomes Ferreira in Cabaré 

 

 

José Gomes Ferreira – Poeta Militante I

Círculo de Leitores (2003)

 

 

 

 

prato da semana: MEA CULPA requentada

29.07.16

" Os homens nunca se contentam... E eu, a falar franco, fartei-me deste Imprevisto Anárquico do Sonho em que vivi e agora apetece-me voltar a provar aquilo a que chamamos Realidade...Além disso... Ouve: vou dizer-te um segredo... mas promete-me que não o revelas a ninguém... Prometes? Na verdade, o fito principal do meu regresso talvez seja o de tentar revolucionar Chora-Que-Logo-Bebes... endireitar as espinhas dorsais das pessoas... secar as lamentações covardes dos Choraquelobebenses... pregar a reorganização viril da vida em novas bases... (...) E assim, com a mesma facilidade de quem fura nuvens, João Sem Medo coou-se como um espectro através da Muralha, a esfarrapá-la com as botas até alcançar a terra santa de Chora-    -Que-Logo-Bebes que pisou com comoção feliz onde se misturava o prazer do obstáculo vencido, a vaidade próxima de poder enfim contar proezas da viagem aos amigos ( e porventura também, já timidamente esboçado, o arrependimento do regresso). (...) Mas enriqueceste, ao menos? Trazes dinheiro  para me fazeres um enterro decente quando chegar a minha horinha? 

    - Não, minha mãe. Nem é necessário. Porque a vida da nossa aldeia vai modificar-se radicalmente.

E com ímpeto de sentir um comício na garganta, galgou até ao cimo de um penedo e desatou a discursar aos chorincas que o rodeavam:

    - Cidadãos! Precisamos de organizar uma conspiração urgente contra as lágrimas mal choradas. E rasgar o musgo das faces. E tirar o verdete das bocas. (...)

Mas, pouco a pouco, a um e um, os Crolaquelogobebenses, apavorados com estas palavras que perturbavam a vocação geral para mortos e a paz podre das longas digestões da Fome, começaram a esquivar-se à sorrelfa (...)

    - Deixa essas ideias, meu filho... Não estragues o nosso rico sossego, a nossa aprendizagem para cadáveres. E chora, chora, chora como nós. Derrete-te em lágrimas e desiste. 

     - Não, não desisto, Mãe - berrou teimoso e temerário (por fora).

 Mas ao mesmo tempo (...) foi murmurando à mãe com certa prudência prática de homem cansado:

   - Não desisto, Mãe. Não desisto, percebe?... Mas provisoriamente, para restaurar as forças, sabe o que me apetecia agora?... Um jantarinho cá dos nossos... (...) Mas não cuide que desisto da luta! Não! Jamais!... É só um apetite... 

(...) E a pobre lá foi cozer o bacalhau demolhado em lágrimas. 

Então, João Sem Medo, sempre à espera de não sabia bem de quê... talvez do milagre que um dia o ajudasse a secar aquelas lágrimas da Terra... talvez esperançado na chegada do outro João Sem Medo que, afinal, apenas o procurava de noite, durante o sono...

.... Então, João Sem Medo, provisoriamente, sempre provisoriamente, vendo tantos olhos a chorar... montou uma fábrica de lenços e enriqueceu. 

( Ah! Mas um dia, um dia!...) " 

 

José Gomes Ferreira  – Aventuras de João Sem Medo (1963)

 

Licença Editorial por cortesia de Publicações Dom Quixote para Círculo de Leitores (Dezembro,2003)

 

 

Dedicatória da Primeira Edição (1963)

 

 

Para os meus dois filhos:

Para ti, Raul José, homem há muito - e homem autêntico - , que aprendeste à tua custa que

a verdadeira coragem é a força do coração... 

 

Para ti, Alexandre, ainda criança, mas já com todas as tendências para não te tornares num desses falsos adultos que sujam o mundo e odeiam a Imaginação... 

 

Para os meus dois filhos - o homem e a criança - este Divertimento escrito por quem sempre sonhou conservar a Criança bem viva no Homem.