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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

duo

16.12.20

Sinto o não e o sim [...]

Porque é tudo tão breve e tão longo, não sei.

Tenho os olhos fechados de abertos de ternura. 

 

António Ramos Rosa in  CICLO DO CAVALO  - Obra Poética I

Assírio & Alvim (2018)

 

 

 

a paz

11.12.20

encontrámo-nos na editora, no primeiro andar, onde ficava a lindíssima sala de audições, (antes do incêndio do Chiado), com o piano, e o melhor que havia de material de bobinas. Comecei a ouvir e já não saí dali. Depois a porta abriu-se e ele saiu [...] E disse-me: anda cá, quero que ouças. E eu ouvi, ainda não era definitivo, mas já não era maquete. O que achas? E eu disse, acho que devias ter instrumentos tradicionais, porque está muito elétrico, muito rock. As tuas melodias pedem instrumentos de Portugal. A tua cena é muito de cá. Foi o nosso primeiro contacto e houve logo uma grande empatia. Ele era uma pessoa cheia de humor, sempre tão bem arranjado, cuidado, cheiroso. Usava pulseiras de picos, correntes de cães, adereços estranhos, a maior parte feita por ele, e era a paz em pessoa. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)

Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

justos

18.11.20

Há cerca de 22 mil pessoas no mundo que são reconhecidas como Justos Entre as Nações, mas diplomatas são menos de cem. Atualmente, há quatro portugueses nessa lista: o padre Joaquim Carreira, o embaixador Sampaio Garrido, José Brito Mendes e Aristides de Sousa Mendes. São heróis que devem ser conhecidos e estudados em todas as escolas. Mas há outros Justos estrangeiros que merecem ser conhecidos: o cônsul japonês Sugihara, que também desobedeceu ao seu governo em 1940 e, como Aristides, passou vistos a milhares de refugiados na Lituânia; Giorgio Perlasca, italiano, fez-se passar por diplomata espanhol para "falsificar" documentos, salvando muitos refugiados; Giovanni Roncalli (que veio a ser o Papa João XXIII, em 1958) "falsificou" certificados católicos de batismo para salvar judeus; e Georg Duckwitz, adido na embaixada alemã em Copenhaga, que soube dos planos nazis de deportação para a população judaica dinamarquesa - conseguiu avisar as comunidades e ajudou milhares de pessoas a fugir para a Suécia, salvando-as assim da morte certa [...]

Para salvar inocentes da morte, todos os meios são justos, e nenhum destes homens cometeu crimes ao fazê-lo, contrariamente ao que certos indivíduos extremistas escreveram em Portugal. A medalha dos "Justos" do Yad Vashem tem inscrito: «Quem salva uma vida, salva a humanidade.» Por vezes, a tradução varia, o que origina diferentes versões, mas a ideia é que cada pessoa contém em si todos os elementos do universo, todo o bem e todo o mal e, como está escrito nos livros santos, o «homem é feito à imagem e semelhança de Deus». 

 

António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto
Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes  (2017)

 

 

38

23.09.19

(...)

As palavras mais simples têm frio

como a palavra amor

como a palavra tempo

(...)

As palavras mais simples são as mais preciosas

como uma sombra vã

numa rua deserta 

 

 

António Ramos Rosa in À MEMÓRIA DE PAUL ÉLUARD

 

António Ramos Rosa - Obra Poética I 

Assírio & Alvim (2018)

 

 

 

vividamente

28.08.19

irei eu rir quando se descobrir

que a morte é pertença deste lado exausta do milagre e do 

                                                                                                         [ sonho.

 

 

Paulo da Costa Domingos in ARA

 

 

Paulo da Costa Domingos – Carmina (1971-1994)
Antígona (1995)

 

 

 

pessoas aborrecidas

11.04.18

só as pessoas aborrecidas é que se aborrecem. Têm de se estimular continuamente para se sentirem vivas. 

 

Charles Bukowski in A Dança Do Cão Branco - Música para Água Ardente (1983)

Antígona (2015)

 

 

 

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1 de outubro, dia mundial da música

01.10.17

Reunimo-nos para ensaiar um programa de quartetos do século xx - Bartók, Chostakovitch, Britten - , mas tudo isso ficou para trás. Há meia hora que discutimos se havemos de aceitar ou não a proposta da Stratus.

Helen não tira os olhos de Billy. Billy começa a sentir-se mal. O problema para o qual Billy acabou de chamar a atenção é fácil de constatar e difícil de resolver. Para a Arte da Fuga ser interpretada por um quarteto de cordas na prevista chave de ré menor - porque Billy não põe outra hipótese -, algumas das passagens da segunda voz mais alta (tocada por mim) ficarão abaixo do compasso do violino. Posso tocá-las numa viola normal, o que não põe problemas de maior. Mas, além disso, uma série de passagens para a terceira voz mais alta (tocada por Helen) fica uma quarta abaixo do compasso da viola. E aí é que está o busílis.

- Não posso afinar uma quarta abaixo, Billy. Deixa-te de idiotices. Se insistes na mesma chave, teremos simplesmente de transpor fragmentos para uma oitava acima.

- Não - diz o inflexível Billy. - Já falámos disto tudo. Não é uma opção. Isto tem que ficar bem feito.

- Então em que é que ficamos? - pergunta Helen desesperada.

- Bem - diz Billy, olhando para ninguém em particular -, podíamos arranjar um violoncelista para estes contrapontos específicos e tu fazias o resto.

Caímos todos em cima do Billy.

- Nem pensar - digo eu.

- Ridículo - diz Piers.

- Estás doido? - pergunta Hellen.

O filho de Billy, Jango, está a brincar sozinho num canto da sala de Helen. Sente que o pai está a ser atacado e aproxima-se. Volta e meia a mulher de Billy, Lydia, que é fotógrafa por conta própria, deixa Jango com ele e quando é dia de ensaio Billy e nós todos arranjamo-nos como podemos. Jango é um miúdo giro e muito musical. Billy diz que quando está a ensaiar Jango fica a ouvi-lo horas sem fim e às vezes põe-se a dançar. Mas nunca nos perturba durante os ensaios, apesar das dissonâncias do nosso século.

Mas agora Jango fita-nos, preocupado.

- Upa! - diz Billy, pegando nele e montando-o no seu joelho (...)

- E se a gente.... - sugere Billy, hesitante. - Antes do ensaio, quero dizer...

- Antes do ensaio o quê? - interrompe Piers, exasperado.

- Prometi ao Jango que tocávamos Bach se ele se portasse bem.

- Pelo amor de Deus - diz Piers (...)

- E porque não? - diz Helen, para espanto de toda a gente. - Só um bocadinho.

De maneira que afino rapidamente e tocamos o primeiro contraponto da Arte da Fuga (...) Billy tem os olhos postos no filho, sentado à frente dele, de cabeça inclinada. Que pensa ele disto tudo, com a sua tenra idade, não sei, mas pela expressão que tem no rosto é óbvio que está a gostar.

 

 

Vikram Seth – Uma música constante (1999)

Impresso e encadernado para Círculo de Leitores por RODESA (outubro, 2001)

 

 

 

 

diálogos

31.07.17

Não são as nossas vidas actuais que se comunicam

já sei

mas sim os nossos mistérios que dialogam. 

 

 

José de Almada Negreiros, QUARTA MANHÃ in AS QUATRO MANHÃS
Poemas Escolhidos José de Almada Negreiros - Assírio & Alvim | Porto Editora 2016