" Os homens nunca se contentam... E eu, a falar franco, fartei-me deste Imprevisto Anárquico do Sonho em que vivi e agora apetece-me voltar a provar aquilo a que chamamos Realidade...Além disso... Ouve: vou dizer-te um segredo... mas promete-me que não o revelas a ninguém... Prometes? Na verdade, o fito principal do meu regresso talvez seja o de tentar revolucionar Chora-Que-Logo-Bebes... endireitar as espinhas dorsais das pessoas... secar as lamentações covardes dos Choraquelobebenses... pregar a reorganização viril da vida em novas bases... (...) E assim, com a mesma facilidade de quem fura nuvens, João Sem Medo coou-se como um espectro através da Muralha, a esfarrapá-la com as botas até alcançar a terra santa de Chora- -Que-Logo-Bebes que pisou com comoção feliz onde se misturava o prazer do obstáculo vencido, a vaidade próxima de poder enfim contar proezas da viagem aos amigos ( e porventura também, já timidamente esboçado, o arrependimento do regresso). (...) Mas enriqueceste, ao menos? Trazes dinheiro para me fazeres um enterro decente quando chegar a minha horinha?
- Não, minha mãe. Nem é necessário. Porque a vida da nossa aldeia vai modificar-se radicalmente.
E com ímpeto de sentir um comício na garganta, galgou até ao cimo de um penedo e desatou a discursar aos chorincas que o rodeavam:
- Cidadãos! Precisamos de organizar uma conspiração urgente contra as lágrimas mal choradas. E rasgar o musgo das faces. E tirar o verdete das bocas. (...)
Mas, pouco a pouco, a um e um, os Crolaquelogobebenses, apavorados com estas palavras que perturbavam a vocação geral para mortos e a paz podre das longas digestões da Fome, começaram a esquivar-se à sorrelfa (...)
- Deixa essas ideias, meu filho... Não estragues o nosso rico sossego, a nossa aprendizagem para cadáveres. E chora, chora, chora como nós. Derrete-te em lágrimas e desiste.
- Não, não desisto, Mãe - berrou teimoso e temerário (por fora).
Mas ao mesmo tempo (...) foi murmurando à mãe com certa prudência prática de homem cansado:
- Não desisto, Mãe. Não desisto, percebe?... Mas provisoriamente, para restaurar as forças, sabe o que me apetecia agora?... Um jantarinho cá dos nossos... (...) Mas não cuide que desisto da luta! Não! Jamais!... É só um apetite...
(...) E a pobre lá foi cozer o bacalhau demolhado em lágrimas.
Então, João Sem Medo, sempre à espera de não sabia bem de quê... talvez do milagre que um dia o ajudasse a secar aquelas lágrimas da Terra... talvez esperançado na chegada do outro João Sem Medo que, afinal, apenas o procurava de noite, durante o sono...
.... Então, João Sem Medo, provisoriamente, sempre provisoriamente, vendo tantos olhos a chorar... montou uma fábrica de lenços e enriqueceu.
( Ah! Mas um dia, um dia!...) "
José Gomes Ferreira – Aventuras de João Sem Medo (1963)
Licença Editorial por cortesia de Publicações Dom Quixote para Círculo de Leitores (Dezembro,2003)
Dedicatória da Primeira Edição (1963)
Para os meus dois filhos:
Para ti, Raul José, homem há muito - e homem autêntico - , que aprendeste à tua custa que
a verdadeira coragem é a força do coração...
Para ti, Alexandre, ainda criança, mas já com todas as tendências para não te tornares num desses falsos adultos que sujam o mundo e odeiam a Imaginação...
Para os meus dois filhos - o homem e a criança - este Divertimento escrito por quem sempre sonhou conservar a Criança bem viva no Homem.