O REMOTO REI DOS CORVOS,
Edgar Allan Poe,
deixa cair do seu bico,
no centro de uma biblioteca,
os restos de uma musa.
Cansados de tanta melancolia,
os ratos montam à sua volta um circo.
«Annabel Lee», «Annabel Lee»,
guincham os bichos,
repartindo os ossos entre si.
Mostram os dentes,
esticam-lhe a pele.
Sabem que o poema
não tem outro precursor
a não ser a fome,
nem outro seguidor
a não ser o crime.
Golgona Anghel
Golgona Anghel in Como Uma Flor de Plástico Na Montra De Um Talho (2013)
Assírio & Alvim (2017)
TUDO O QUE NÃO É LITERATURA ABORRECE-ME -
quixava-se um checo muito conhecido.
As nossas vidas, aliás, deviam acontecer sempre no futuro,
onde, no fundo, sucedem todos os romances.
O nosso estilo teria a nitidez dos tratados científicos
e a força da descrição de uma batalha -
embora os críticos tentassem
transformar tudo isto num relatório criminal
ou no argumento para um filme de Domingo à tarde.
O Eduardo Prado Coelho era capaz de fazer isso.
Mas é preciso fugir ao máximo dos museus de cera,
perseguir os funcionários públicos do senso comum,
evitar que as mulheres feias tenham filhos.
Aliás, é urgente matar toda a gente que tem fome.
Por isso, não me venhas com xaropes e bancos alimentares.
Não me trates as doenças.
Não levantes a mão.
Vem, vem apenas,
como as you are
- embora seja tarde.
Vem para esta sala de baile com portas cheias de musgo
e vozes molhadas em tabaco.
Vem passar uma noite nos seus cantos húmidos
onde coronéis e generais
levantavam as saias à história.
Já tirámos os cavalos,
já limpámos as trincheiras.
Vem ralar na minha pele arrepiada
a cor pálida da lua
como se fosse a casca de um limão.
Vem sem falta -
o palco está vazio,
a sala cheia.
Com o passo lento das derrotas,
um macaco vestido de Shakespeare
conduzir-te-á até ao último acto.
Golgona Anghel
Golgona Anghel in Como Uma Flor de Plástico Na Montra De Um Talho (2013)
Assírio & Alvim (2017)
Serão processados os aborrecidos;
ostracizados os coitados;
perseguidos os crentes;
fuzilados os fracos;
odiados os feios;
perdidas as esperanças.
Por ordem do autor. Contra a vontade de São Epifânio.
Golgona Anghel in Como Uma Flor de Plástico Na Montra De Um Talho (2013)
Assírio & Alvim (2017)
OLHE, PRECISO DE DINHEIRO
Preciso de muito dinheiro. Quero abrir um negócio.
Algo meu, sabe como é. Estou farto de patrões.
Não posso passar a minha vida atrás de um balcão.
A levar todas as noites com a baba dos perdidos nas trombas.
Já não tenho paciência.
Com esta idade, já viu o que é.
Sujeitar-se a todos os labregos.
Já tentei noutros bancos, sim.
Pedi também aos meus pais, é verdade;
disse-lhes que era para me casar.
Não, não tenho casa, nem automóvel.
Mas, olhe, posso garantir com o meu corpo.
O meu fígado, senhor, tem que ver o meu fígado.
É fígado de motard. Isto parece encolhido e tal,
mas anda a mil.
E adiantado, não pode pagar nada como entrada?
Entrada, não sei.
Só se for o coração.
Golgona Anghel
Golgona Anghel in Como Uma Flor de Plástico Na Montra De Um Talho (2013)
Assírio & Alvim (2017)