É difícil imaginar o estado de espírito de Aristides quando se apercebeu de que não conseguiria salvar todos os refugiados que por ele esperavam. A imagem do cônsul português a passar freneticamente vistos na rua em Bayonne, ou a acelerar rumo à fronteira para abrir ele próprio a cancela antes que lá chegasse a ordem que dava os seus vistos como nulos, foi aproveitada pelos instigadores do seu processo disciplinar para sugerir "ato de loucura" de um "homem perturbado por trágicas circunstâncias". Mas nós, a sua família, sabemos que era compaixão e o sentido de justiça que o moviam, e a vontade de "desobedecer até ao fim" para conseguir salvar o máximo de vidas possível. Mesmo que isso lhe custasse o resto da carreira.
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)
No início do giro, endireitava-se, tirava o apito, um dos grandes, e soprava, com cuspo a voar em todas as direcções. Isto era para as crianças saberem que ele tinha chegado. Levava-lhes rebuçados. Elas vinham a correr e ele ia-lhes dando os rebuçados enquanto descia a rua. O bom do G.G. [...]
Mas um dia o G.G. meteu-se numa alhada. O bom do G.G. Encontrou uma miúda pequena nova na zona. E deu-lhe rebuçados. E disse:
- Bem, tu és uma menina muito bonita! Gostava que fosses a minha menina!
A mãe estava a ouvir à janela e desatou a correr aos gritos, a acusar o G.G. de molestar uma criança. Como não conhecia o G.G., os rebuçados e aquela conversa foram demais para ela.
O bom do G.G. Acusado de molestar uma criança.
Entrei e ouvi o Stone a falar ao telefone com a mãe, tentando explicar-lhe que o G.G. era um homem honrado. O G.G. estava sentado à frente do seu móvel, absorto.
Quando o Stone acabou a conversa e desligou, eu disse-lhe:
- Não devias dar graxa a essa mulher. Ela tem uma mente suja. Metade das mães americanas, com as suas queridas ratas e as suas queridas filhinhas, metade das mães americanas tem a mente suja. Ela que se lixe. [...]
- A 7 de janeiro de 1983 fomos os dois à festa do Pós-Modernismo, organizada pelo Leonel Moura na Sociedade Nacional de Belas-Artes. O António ia vestido com uma rede de capoeira, por cima de uma camisola de malha cinzenta e uns collants. A rede, fui eu que lha moldei ao corpo, com fechaduras e dobradiças. Depois, pus-lhe um cinto de correntes, e cosi-lhe, nos braços e nas pernas, fechaduras e dobradiças de portas. Foi a toilette mais espampanante que ele alguma vez usou - conta Teresa Couto Pinto [...] Mas quando António Variações entra na festa que assinala o evento, há um frémito de espanto, um silêncio brevíssimo, uma alegria. Passaram tantos anos, mas Leonel Moura, um dos grandes promotores do evento, recorda-se de ter dito aos seus pares: «este tipo não está inserido no nosso movimento, mas é muito mais avançado e radical do que toda esta gente que se diz muito avançada e muito de vanguarda». E acrescenta:
- Porque ele apareceu vestido à maneira dele, mas particularmente exuberante, com uma rede de galinheiro, um puxador de porta pendurada na orelha, um cinto de correntes, um bocado na onda do punk, mas em Portugal não havia nada assim. Aliás, a moda que estava também em exposição era uma coisa muito banal, não deixou rasto. Eventualmente alguns cresceram, e tornaram-se estilistas mais conhecidos, mas ali a sua intervenção não marcou. O Variações sim. E, provavelmente sem o saber, era realmente o artista pós-moderno por excelência.
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
António recarregava baterias nessas visitas a Fiscal (...) Artista consagrado, cabeça de cartaz, ídolo de multidões, continuava a chegar de camioneta e a subir a serra a pé até ao lugar do Monte, sem a ostentação de carros de luxo ou buzinas estridentes, bastando, para causar alarido, a sua figura singular. Um alarido que ele tenta atenuar ao entrar na aldeia de forma não muito exótica, privilegiando, por exemplo, as antigas camisas minhotas, sem colarinho, que usou muito tempo, mas... que já ninguém usava. E as calças em tons sóbrios, mas... muito largas e apertadas no tornozelo.
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Paulo da Costa Domingos – Carmina (1971-1994) Antígona (1995)
Toutes les machines ont un cœur, t'entends? Toutes les machines ont un cœur, dedans Qui bat, qui bat, qui bat Comme on se bat maman Comme on se bat pourtant
On n'avait pas prévu ça D'avoir des doigts Messenger Des pouces ordinateur Sur les machines on passe des heures Sur les machines on dessine un cœur Qui bat, qui bat, qui bat On tape nos vies dedans Autant de likes et de leurres, de flammes De selfies, de peurs, de smileys en couleur
Toutes les machines ont un cœur, t'entends? Toutes les machines ont un cœur, dedans Qui bat, qui bat, qui bat Comme on se bat maman Comme on ne sait pas vraiment
Comment se sortir de là Le monde la gueule qu'il a Qui c'est qui lui a fait ça? C'est pas nous, c'est pas moi, t'entends? Le bruit des machines permanent Qui bat, qui bat, qui bat Battu pour le moment Je suis tout juste capable De voir le monde en grand Tant que le monde est portable
Toutes les machines ont un cœur, t'entends? Toutes les machines ont un cœur, dedans Qui bat, qui bat, qui bat Comme on se bat maman Comme on se bat pourtant
Tu dis «à quoi ça sert, t'as rien de mieux à faire? Sais-tu le temps que tu perds?» Toutes les machines ont un cœur, pourtant Un monde meilleur caché dedans Qui bat, qui bat, qui bat Moi des idées j'en ai mille Tout au bout de mes doigts Des étincelles et des îles Des ailes que je déploie Maman, maman c'est moi C'est moi, c'est moi le moteur, t'entends? Dans toutes les machines y a mon cœur dedans Qui bat, qui bat, qui bat Comme je me bats maman Si le monde est mon mobile Mon cœur pour le moment Est comme le monde maman
Et le monde est fragile Et le monde est fragile Et mon cœur est fragile Et le monde est fragile Et le monde est fragile
Toutes les machines ont un cœur, t'entends? Toutes les machines ont un cœur, dedans Et mon cœur est fragile
Aquela cara de feições enormes, de gigante triste, volta-se de vez em quando para a multidão dos visitantes que estão para lá do vidro, a menos de um metro de distância; um lento olhar carregado de desolação de ser como se é, único exemplar no mundo de uma forma não escolhida, não amada, todo o cansaço de se carregar sobre os ombros a sua própria singularidade, todo o desgosto de ocupar o espaço e o tempo com a sua própria presença, tão embaraçante e tão vistosa.
Em 1916, foram expostas 114 obras no Porto, 113 em Lisboa. A exposição comemorativa reúne aproximadamente 70% das obras identificadas a partir dos catálogos originais e estará patente no Museu Nacional Soares dos Reis, de 1 de Novembro de 2016 a 1 de Janeiro de 2017, e no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, de 12 de Janeiro a 26 de Fevereiro de 2017.
in http://www.patrimoniocultural.pt/pt/agenda/exhibitions/exposicao-amadeo-de-souza-cardoso-porto-lisboa-2016-1916/