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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

15
Mar22

bufarinheiros

Cecília

Vagueio de casa em casa como os frades da Idade Média que enganavam as raparigas e as mulheres casadas com contas e baladas. Sou um viajante, um bufarinheiro, pagando com uma caução a hospitalidade que me oferecem; sou um convidado fácil de agradar; alguém que ora dorme no melhor quarto da casa, na cama de dossel, ora passa a noite no estábulo, deitado num molho de feno. Não me importo com as pulgas, o mesmo se passando com o toque da seda. Tenho uma percepção demasiado clara da perenidade da vida e das tentações que a caracterizam para impor proibições. Apesar de tudo, não sou tão tolerante como vos pareço

 

Virginia Woolf – As Ondas (1931)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

14
Mar22

estendida

Cecília

Nunca possuirei outra coisa para além de felicidade natural. Bastará isso para me contentar. Irei cansada para a cama. Serei como um campo cujas colheitas vão aumentando; no Verão, o sol aquecer-me-á; no Inverno, a geada fará com que fique queimada. Contudo, o frio e o calor seguir-se-ão de forma natural, sem que eu tenha qualquer coisa a ver com o facto. Os filhos dar-me-ão continuidade; as suas dores de dentes, os seus choros, as suas idas e vindas da escola serão como as ondas do mar que se estende a meus pés.

 

Virginia Woolf – As Ondas (1931)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

17
Fev22

disfunções

Cecília

Os fatores relativos ao nosso funcionamento cognitivo, embora muito importantes, não são, porém, suficientes para explicar a dinâmica dos estereótipos [...] é importante sublinhar que os estereótipos podem mudar de acordo com mudanças no padrão de relações entre grupos. Quando os grupos entram em competição por recursos, os estereótipos mútuos tornam-se sobretudo negativos; porém, logo que os mesmos grupos são envolvidos em relações de cooperação para a sobrevivência mútua, esses estereótipos tornam-se positivos [....]

Da mesma forma, sempre que na União Europeia se verificam crises associadas à gestão de recursos comuns, como a crise do Euro em 2010 ou a crise de 2020 associada à COVID-19, ressurge a categorização dos países europeus em países do Norte vs. países do Sul, envolvendo cada categoria um número variável de nações, mas sempre acompanhada dos mesmos estereótipos ou imagens, mobilizados para justificar medidas ou a ausência delas: o Norte representado como «formiga» e o Sul como «cigarra» e, mais recentemente, «os frugais» contra os «gastadores».

Estas dinâmicas e mesmo mudanças nos estereótipos e na sua valência mostram como estes refletem a natureza mais competitiva ou mais colaborativa das relações entre os grupos e as motivações associadas a essas relações. A instabilidade destas imagens estereotípicas contradiz a perceção que temos de que os traços estereotípicos de um grupo refletem o que esse grupo é, e não o que pensamos sobre ele [...]

 

Jorge Vala – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

The Future of Europe

Spiros Derveniotis

 

19
Jul21

o jogo do fogo das coisas que são

Cecília

Era 1h15m. Os jovens militares não compreendiam nada do que se passava. Pouco depois de terem formado, aparece-lhes à frente o tal capitão, que lhes faz um discurso bastante simples: «Há várias formas de Estado: Estados liberais, estados democráticos e... o estado a que "isto" chegou. Vamos fazer um golpe de estado. Só vem quem quer. Quem não quiser, não vem.»

Entre esses «bravos» há um cadete de segundo ciclo que dá pelo nome de Francisco Fernando de Moncada de Sousa Mendes. Tem 21 anos, e é neto de Aristides e de Angelina de Sousa Mendes. É meu primo em primeiro grau, e também ele conhece bem o drama vivido pela mãe, Clotilde, pelos avós e demais familiares. Claro que o jovem diz que sim, que quer viver este momento histórico [...]

Gosto de pensar que é mais do que mera coincidência o facto de, entre os 240 que saíram nessa noite da Escola Prática de Cavalaria de Santarém em viaturas blindadas para irem fazer o tal golpe de Estado a Lisboa, haver um descendente directo de Aristides de Sousa Mendes [...] Alguém terá mais tarde dito a Francisco Fernando que o acaso não existe, e que havia uma razão para ele se encontrar naquele preciso momento na Escola Prática de Cavalaria na especialidade de atirador de cavalaria... 

 

António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto
Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes  (2017)

 

 

10
Dez20

ciclos

Cecília

...Voz do Operário onde, estudando à noite, parece que acabou por conseguir o seu diploma de Curso Comercial - cinco anos, fora os dois que lhe faltavam do ciclo preparatório. Curso exigente, cheio de disciplinas difíceis, cálculo comercial, contabilidade, economia política, técnica de vendas, geografia geral, história, datilografia, estenografia, português, francês, inglês. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

15
Jun20

transmitir

Cecília

O silêncio era, portanto, uma das maneiras que o avô tinha de nos fazer compreender o que pensava acerca de determinado assunto.

A outra eram os gritos.

Os suspiros também eram uma forma de nos transmitir o que sentia. E uma determinada forma de pigarrear, que se escutava uma vez por outra (...) 

 

Hugo Mezena – Gente Séria (2017)

Planeta Manuscrito (2018)

 

 

12
Mai20

perceber um boi

Cecília

Em geral, os bois na corte por baixo do meu quarto faziam-me muita companhia. Era um mugido longo e sincero, profundo (...) O mugido franco e despretensioso desses animais contrastava com a voz do avô, que passava os dias no quarto a falar sozinho. Quem parecia que falava eram os bois, tal a serenidade com que mastigavam a palha e assistiam a este espectáculo. 

 

Hugo Mezena – Gente Séria (2017)

Planeta Manuscrito (2018)

 

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Paturages

Julien Dupré

 

17
Mai18

da importância da educação / ensino

Cecília

a educação privada é intolerável nas famílias degeneradas, entregues a maus hábitos e imbuídas de maus princípios. Mais vale o abominável regime do colégio. 

No seio das famílias honestas e tranquilas, porém, deveria ser um dever ficar com a guarda das crianças e não as obrigar a aprender os factos da vida num colégio onde a igualdade só existe à lei da pancada, onde a disciplina é embrutecedora, onde a autoridade é brutal, pueril e tacanha - já para não mencionar os vícios que proliferam em todas as instituições do género. Hoje em dia, contudo, parece que a educação moral já não é necessária ao homem; parece que todos preferem refugiar a vida na inteligência e virar as costas ao coração. No que respeita às crianças inteligentes, tudo o que o que o colégio consegue desenvolver é o orgulho e o amor-próprio. Já as crianças não-inteligentes, essas ficam-se pelos instintos vis e grosseiros. Em todas, mesmo nas naturezas mais naturalmente generosas que essa detestável educação não consegue corromper por completo, é a vaidade que se sobrepõe a tudo o resto (...) 

A melhor educação possível passaria por uma soma perfeitamente combinada de conhecimentos (...) pelo verdadeiro progresso do coração: a intensa estimulação dos sentimentos (...) do sentido de justiça, de elevação moral, de gratidão, de boa-fé, de dedicação. Um tipo de ensino dotado de poder persuasivo (...) pois, se não bastar a palavra, resta-nos o exemplo. O homem mais modesto, a mulher menos culta, qualquer pai ou mãe poderá oferecê-lo ao seu filho (...) 

Necessário seria, sobretudo, conhecer o carácter de uma criança, fazer com que também se conhecesse a si mesma, e tão profundamente que se sentisse forçada a reconhecer a verdade pelo menos para si própria; chamar a atenção dela para os seus defeitos, fazer-lhe notar os insucessos e as vitórias, encorajar a sua progressão no caminho do bem. Se a criança for ávida de ciência, devemos tentar refreá-la, mostrar-lhe que a inteligência de nada serve sem a bondade, sem a virtude, sem o amor. No caso de se revelar indolente mas doce e afectuosa, é necessário que compreenda que se deve instruir e cultivar por amor àqueles que a educam, e transformar o desenvolvimento da sua inteligência num sacrifício, num acto de completa dedicação (...) há que habituar as crianças a explicarem com arrojo aquilo que conhecem bem e desvalorizar-lhes o pretensiosismo quando falam do que não conhecem de todo, ou do que conhecem mal. Fazer por ridicularizar, sem compaixão, a sua apetência pelo poder. Ridicularizar igualmente os seus apáticos desalentos, pretexto para a indolência (...) O afecto do apreço, da confiança, do discernimento, que fará com que os apuremos segundo o seu mérito, e que os tratemos como o fardo ou o sustentáculo da família, conforme a fraqueza ou a força demonstradas, a dedicação ou o egoísmo (...) O dos colegas, que tendem a arrancar dos outros uma vã honra pública alardeando uma aclamação visível, é o sentimento mais daninho e perverso que podemos fazer eclodir no homem. A criança que triunfa graças à derrota dos seus colegas, e que se alegra em ser coroada em público com mais um louro no alto da cabeça, não passará de um poeta despeitado, um artista invejoso e fingido, um deputado entufado de tola popularidade, um empregado cheio de nula importância, um falso legitimista, um falso doutrinário, um cidadão sem espírito de fraternidade, devoto à pátria apenas devido às recompensas que dela obterá, um orador mais interessado em bem falar do que em demonstrar o bom princípio, um agricultor mais preocupado em alinhar as árvores e em fazer gala de uma manada ostentosa do que em melhorar as suas terras e naturalizar as espécies verdadeiramente adequadas aos seus terrenos, ou seja, um homem desprovido de consciência, de bondade, de genuíno pundonor, cuja utilidade reverte, quando muito, apenas para si mesmo, inútil aonde quer que vá, prejudicial ao bem alheio, e infeliz, caso a sua vaidade não seja satisfeita por um êxito proporcional à sua ambição, ou, caso o seja, perverso, despótico, injusto. 

 

 

George Sand – Diário Íntimo

Antígona (2004)

 

 

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