Foi então que te encontrei no sítio onde se vai pendurar o casaco e disse para comigo: "Não interessa quem se conhece. Esta história de 'ser' já terminou. Não sei de quem se trata nem me interessa saber; jantaremos juntos". Foi então que pendurei o casaco, te dei uma pancadinha no ombro e disse: "Anda, vem sentar-te junto a mim".
Virginia Woolf – As Ondas (1931)
Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)
António Ramos Rosa in MEDIADORA DO NÃO LUGAR - Obra Poética I
Assírio & Alvim (2018)
Primeiro foram as mãos que me disseram que ali havia gente de verdade depois fugi-te pelo corpo acima medi-te na boca a intensidade senti que ali dentro havia um tigre naquele repouso havia movimento olhei-te e no sol havia pedras parámos ambos como se parasse o tempo parámos ambos como se parasse o tempo
é tão dificil encontrar pessoas assim bonitas é tão dificil encontrar pessoas assim bonitas
atrevi-me a mergulhar nos teus cabelos respirando o espanto que me deras ali havia força havia fogo havia a memória que aprenderas senti no corpo todo um arrepio senti nas veias um fogo esquecido percebemos num minuto a vida toda sem nada te dizer ficaste ali comigo sem nada te dizer ficaste ali comigo
é tão dificil encontrar pessoas assim bonitas é tão dificil encontrar pessoas assim bonitas
falavas de projectos e futuro de coisas banais frivolidades mas quando me sorriste parou tudo problemas do mundo enormidades senti que um rio parava e o nevoeiro vestia nos teus dedos capa e espada queria tanto que um olhar bastasse e não fosse no fundo preciso queria tanto que um olhar bastasse e não fosse preciso dizer nada
é tão dificil encontrar pessoas assim bonitas é tão dificil encontrar pessoas assim pessoas
Sebastião (...) ao despedir-se do pai prometeu-lhe, diante da mãe, que iria contar ao mundo a história da atitude heroica do cônsul de Bordéus em 1940. E assim o fez. Em agosto de 1945 instalou-se na Califórnia, e com o irmão Carlos Francisco Fernando começou a divulgar o gesto de rebeldia praticado pelo pai, que tantas vidas tinha salvado, e que era uma verdadeira proclamação dos direitos humanos. Escreveu vários rascunhos (...)
Mas nos anos que se seguiram ao apocalipse que foi a Segunda Guerra Mundial, a Humanidade não estava preparada para ler histórias de morte, destruição e iniquidade. As pessoas queriam olhar para um futuro menos escuro, menos duro. Acabavam de sair do inferno, queriam esquecê-lo, queriam aproveitar o que a vida tinha de bom para lhes oferecer, e deixar para trás os anos de luta e desesperança. É verdade que havia filmes sobre a guerra, e as pessoas iam ao cinema vê-los, mas era difícil o processamento, de um ponto de vista mais racional, mais intelectual, de um horror como a carnificina que foi o Holocausto. Era muito penoso, como coletivo, termos de nos interrogar sobre as razões que permitiram que tal monstruosidade acontecesse.
Teriam de passar 70 anos para que os países que participaram na Segunda Guerra Mundial se voltassem para esse período da História, fizessem eles parte dos vitoriosos ou dos derrotados. Essa já era uma história que tinha sido vivida pelos nossos avós, duas gerações tinham nascido e crescido depois daquele horror, e agora desejavam compreender minimamente aquilo que pais e avós não puderam entender.
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)
Certa vez, o avô Jorge cortou a ponta do dedo com a tesoura da poda. Nesse caso, o grito foi curto e grave. Como se o som quisesse sair e ele o metesse para dentro. Lutava não apenas com o sangue que jorrava como de uma mangueira, mas com o próprio grito. E logo de seguida, com um lenço apertado no dedo, o avô conseguiu dominá-lo. Tinha sido uma questão de segundos. Um desleixo. Uma coisa a não repetir.
[...]
Aquele grito existiu, não era possível voltar atrás, mas foi remetido para a escuridão no mesmo momento em que foi produzido. A escuridão das coisas de que não é permitido falar. As coisas íntimas. As coisas que se querem só para nós.
Os gritos da mãe eram outra coisa. Eram gritos virados para fora. Queriam dizer que existiam. Viajar para longe. Perdurar no tempo e na distância. Era como se fizessem questão de permanecer dentro dela e ela os quisesse expulsar. Como se, de boca aberta, procurasse projectar o som o mais longe que podia.
E a isto, percebi depois, as pessoas chamavam desabafar.
- Deita tudo cá para fora - ouvi o resto do dia.
Isso queria dizer que o avô tinha procurado abafar a sua dor, comê-la. Por outro lado, a mãe fazia todos os possíveis para desabafar a sua dor, vomitá-la. Isto era compreensível. À partida, só conseguíamos manter uma dor dentro de nós se ela lá coubesse. E tendo em conta o que ouvi durante esses dias, era natural que a dor da mãe fosse muito maior do que a do avô.