os mortos paridos pela diplomacia
Vamos passear junto ao rio na mais completa solidão. Está quase na hora de deitar. As pessoas já foram para casa. É bastante reconfortante observar as luzes apagarem-se nos quartos dos pequenos comerciantes que vivem do outro lado do rio. Ali está uma, ali outra. Quais terão sido os lucros por eles hoje obtidos? Apenas o suficiente para pagar a renda, a electricidade, a comida e a roupa dos filhos. Mas apenas o suficiente. Como é grande a sensação de que a vida é tolerável que nos é dada pelas luzes dos quartos dos pequenos lojistas! Quando chega o sábado, o mais provável é terem apenas dinheiro para pagar quatro entradas de cinema. Talvez que antes de apagarem as luzes se dirijam até ao pequeno jardim que possuem para olhar o coelho gigante que se encontra dentro da capoeira de madeira. Trata-se do coelho que comerão ao jantar de sábado. Depois apagam as luzes. Depois adormecem. E, para milhares de pessoas, dormir não passa de algo quente e silencioso, de um prazer momentâneo composto por um qualquer sonho fantástico. «Enviei a carta para o jornal de domingo», pensa o merceeiro. «Suponhamos que ganho quinhentas libras no jogo de futebol. E, claro, mataremos o coelho. A vida é agradável. A vida é boa. Enviei a carta. Vamos matar o coelho.» Só então adormece.
[...] Ouço um som semelhante ao deslizar de vagões nos carris. Trata-se da ligação feliz que existe entre os acontecimentos que se sucedem na vida de cada um. Toque, toque, toque. Dever, dever, dever. Deve-se partir, deve-se dormir, deve-se levantar - trata-se daquela palavra sóbria e piedosa que pretendemos insultar, que apertamos com força contra o coração, e sem a qual não existiríamos. Como adoramos o som dos vagões que vão batendo uns contra os outros ao deslizar nos carris!»
Virginia Woolf – As Ondas (1931)
Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)