1 de outubro, dia mundial da música
Reunimo-nos para ensaiar um programa de quartetos do século xx - Bartók, Chostakovitch, Britten - , mas tudo isso ficou para trás. Há meia hora que discutimos se havemos de aceitar ou não a proposta da Stratus.
Helen não tira os olhos de Billy. Billy começa a sentir-se mal. O problema para o qual Billy acabou de chamar a atenção é fácil de constatar e difícil de resolver. Para a Arte da Fuga ser interpretada por um quarteto de cordas na prevista chave de ré menor - porque Billy não põe outra hipótese -, algumas das passagens da segunda voz mais alta (tocada por mim) ficarão abaixo do compasso do violino. Posso tocá-las numa viola normal, o que não põe problemas de maior. Mas, além disso, uma série de passagens para a terceira voz mais alta (tocada por Helen) fica uma quarta abaixo do compasso da viola. E aí é que está o busílis.
- Não posso afinar uma quarta abaixo, Billy. Deixa-te de idiotices. Se insistes na mesma chave, teremos simplesmente de transpor fragmentos para uma oitava acima.
- Não - diz o inflexível Billy. - Já falámos disto tudo. Não é uma opção. Isto tem que ficar bem feito.
- Então em que é que ficamos? - pergunta Helen desesperada.
- Bem - diz Billy, olhando para ninguém em particular -, podíamos arranjar um violoncelista para estes contrapontos específicos e tu fazias o resto.
Caímos todos em cima do Billy.
- Nem pensar - digo eu.
- Ridículo - diz Piers.
- Estás doido? - pergunta Hellen.
O filho de Billy, Jango, está a brincar sozinho num canto da sala de Helen. Sente que o pai está a ser atacado e aproxima-se. Volta e meia a mulher de Billy, Lydia, que é fotógrafa por conta própria, deixa Jango com ele e quando é dia de ensaio Billy e nós todos arranjamo-nos como podemos. Jango é um miúdo giro e muito musical. Billy diz que quando está a ensaiar Jango fica a ouvi-lo horas sem fim e às vezes põe-se a dançar. Mas nunca nos perturba durante os ensaios, apesar das dissonâncias do nosso século.
Mas agora Jango fita-nos, preocupado.
- Upa! - diz Billy, pegando nele e montando-o no seu joelho (...)
- E se a gente.... - sugere Billy, hesitante. - Antes do ensaio, quero dizer...
- Antes do ensaio o quê? - interrompe Piers, exasperado.
- Prometi ao Jango que tocávamos Bach se ele se portasse bem.
- Pelo amor de Deus - diz Piers (...)
- E porque não? - diz Helen, para espanto de toda a gente. - Só um bocadinho.
De maneira que afino rapidamente e tocamos o primeiro contraponto da Arte da Fuga (...) Billy tem os olhos postos no filho, sentado à frente dele, de cabeça inclinada. Que pensa ele disto tudo, com a sua tenra idade, não sei, mas pela expressão que tem no rosto é óbvio que está a gostar.
Vikram Seth – Uma música constante (1999)
Impresso e encadernado para Círculo de Leitores por RODESA (outubro, 2001)