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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

M.S.

08.04.22

Constitui um enorme alívio ter alguém a quem fazer sinais e não pronunciar qualquer palavra. 

 

Virginia Woolf – As Ondas (1931)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

https://www.deviantart.com/enchanting-ce-memory/art/Falling-in-love-129461817

 

frisos nas primeiras filas

10.02.20

Nunca a canção fora tão bela e tão temida, como quando foi servida pelos Príncipes da Palavra. Muitos viviam exilados, ou, se estavam em Portugal, eram presos com frequência. Constituíam uma autêntica plêiade de poetas e baladeiros para quem a canção era uma arma. José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Ary dos Santos, Sophia de Mello Breyner, Manuel Alegre, Natália Correia e outros. Mas até o rock, por fim emergente, acabaria por entrar também pelos caminhos da contestação. Em 1970, o Quarteto 1111 foi, simultaneamente, acusado ou elogiado por ter instalado « a subversão a nível político-social», provocando um autêntico «terramoto» que terminou com a ordem de retirada do álbum de estreia do grupo liderado por José Cid que abordava a guerra colonial, o racismo, a emigração. Foi o primeiro disco de rock censurado. A partir daqui o grupo nunca mais deixou de estar sob mira da censura. Em cada um dos seus espétaculos, havia um friso de homens de gabardina na primeira fila. Não riam, não aplaudiam, não cantavam. Observavam os quatro Uns, que eram «subversivos e perigosos para o regime». Igual destino sofre o álbum de Petrus Castrus, Mestre, cheio de referências à censura, com uma abordagem aos mitos nacionais pela ironia. Nomeadamente em Pátria Amada, que inclui o poema «maldito» de Ary dos Santos, SARL, e que é confiscado pelo Secretariado Nacional da Informação (SNI)[...] O próprio fado, que geralmente não levantava grandes questões, estava também debaixo de olho. A começar pelas serenatas da academia coimbrã, sempre tão suspeitas. Os estudantes nunca eram de confiar... tinham ideias próprias, coisa bizarra e perigosa [...] Até Amália Rodrigues [...] teve um disco censurado. A história conta-se em poucas palavras. Em dezembro de 1968, Vinicius de Moraes, que ia passar o Natal em Roma, fez escala em Lisboa e encontrou-se com Amália em casa desta. Desse longo serão que contou com a presença de poetas, escritores, músicos, resultou um disco cujas faixas são hoje consideradas verdadeiras relíquias da música e poesia em língua portuguesa. Entre os muitos e felizes convivas, encontravam-se Ary dos Santos, Natália Correia, David Mourão Ferreira, e naturalmente a própria Amália e Vinicius. Cantaram-se fados e bossas novas, declamou-se, improvisou-se, durante um longo e maravilhoso serão. O sumariado disco Amália/Vinicius, uma hora, que emergiu deste encontro foi lançado em 1970. Sol da pouca dura. Rapidamente, a Direção dos Serviços de Censura da Emissora Nacional proibiu o precioso manifesto da lusofonia, fazendo-o retirar do mercado. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

 

 

passar à realidade

15.10.18

Que o fosso da memória se transponha,

que seja a solidão atravessada!

Da cálida crisálida renasça

de novo para o corpo o corpo todo!

 

Venham as roucas sílabas da posse

no búzio dos ouvidos enroladas!

Sobre a teia das veias impalpáveis,

reconstrua-se a cúpula dos olhos!

 

Que tudo, tudo, súbito se emprenhe

da realidade que a lembrança apenas

em folha de álbum, ressequida, guarda!

 

Que eu vá de novo decorar-te a seiva,

como um poema líquido que seja

urgente recitar na eternidade!

 

 

 

 

David Mourão-Ferreira - Voto 

Tempestade De Verão (1954)

 

david

24.02.17

David-Mourão Ferreira.jpg

 

E por vezes

 

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
... nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos.
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos.

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.

 

David Mourão-Ferreira

( 24 de fevereiro, 1927 — 16 de junho, 1996)

 

 

Labirinto ou não Foi Nada

09.01.17

Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua ...
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!

Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.

 

David Mourão-Ferreira - À Guitarra e à Viola

nosso namoro

27.07.16

" Sentar-me-ei na poltrona que fica no vão da janela; olharei o mar, esperando que o dia nasça; e tu, a meu lado, recuada na sombra, continuarás aguardando que seja eu o primeiro a dizer alguma coisa.

É preciso inventar? Ou contar a verdade? Só o que invento me comove; só a verdade te emociona. Teremos então de deitar à sorte: ainda não sei qual de nós merece agora reaprender a chorar. " 

 

 

David Mourão-Ferreira, in "Nem tudo é história" 

 

 OS AMANTES e outros contos, Editorial Presença, 8ª edição (1998)