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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

silêncio que se vai contar um fado (I)

23.07.20

- São rosas, senhor - grunhia a dona Maria da Conceição. - São rosas!

Dizia-o com os olhos tão abertos que conseguíamos ver o trapo em que a rainha transportava o pão abrir-se. O pão para os pobres. E de lá de dentro saltavam flores.

- Flores vermelhas - continuava. - Vermelhas como o sangue com que se fez a nação.

De maneira que era tudo muito bem explicado. Voltávamos para casa cheios de pensamentos acerca dessa rainha, que se metia em alhadas por causa dos pobres. Os pobres que o rei, o rei mauzão, não queria ajudar. E a história de Inês de Castro: «Poupai ao menos os meus filhos, eles não têm culpa, senhor», dizia a professora. Mas a melhor parte era quando D. Pedro dava caça aos assassinos da sua amante, que nos era descrita como sua esposa. Legítima esposa. «E arrancou-lhes o coração pelas costas!», dizia a professora. Sobre o facto, também, de os filhos de D. Inês e D. Pedro serem ilegítimos, nem uma palavra. Acerca do embaraço que isso colocava à coroa, muito menos. Sobre os problemas com Castela, muito menos ainda. Nada. Silêncio.

Os reis desfilavam à nossa frente, seguidos pelos seus séquitos, sempre prontos a partir para a guerra. Havia comandantes a rezar à Virgem Maria atrás de uma pedra antes de a batalha começar. Reis que iam voltar numa manhã de nevoeiro que acabaria por chegar. D. Afonso Henriques, que tinha mentido ao papa acerca da doação de uns quantos sacos de ouro ao ano e por isso estava no inferno.

Depois vinham as perguntas. Quem foi o terceiro rei da dinastia de Avis? Como se chamavam os pretendentes ao trono durante o interregno que perdurou de mil trezentos e oitenta e três a mil trezentos e oitenta e cinco? Por quantas embarcações era constituída a armada portuguesa que partiu nesse saudoso ano de mil quatrocentos e quinze à conquista de Ceuta? 

 

Hugo Mezena – Gente Séria (2017)

Planeta Manuscrito (2018)

 

 

Portugal

10.06.20

A palavra rei, por sua vez, queria dizer algo mais do que uma pessoa que estava sentada num trono a mandar. D.Afonso Henriques prometera uma certa quantidade de sacos com ouro ao papa, entregue todos os anos. Mas nunca lhos chegara a dar. Estava no inferno. E tinha metido a própria mãe numa prisão.

Ao usar as palavras dessa maneira, obtivera o seu próprio país. 

Mas isto só queria dizer que ele fora mais esperto do que os outros. Tinha usado as palavras um bocadinho melhor. No que dizia respeito ao papa, bastara dizer-lhe que lhe dava os sacos com ouro. Eram só palavras. Não custava nada. E passar por cima da frase «respeitar pai e mãe» também não constituíra para ele um problema. 

Um conjunto de palavras, afinal, que não se aplicavam sempre. Nem a tudo. Porque se as tivesse levado à letra, não se tinha feito Portugal. 

 

Hugo Mezena – Gente Séria (2017)

Planeta Manuscrito (2018)