Não consigo flutuar com suavidade nem misturar-me com os outros. Prefiro o olhar dos pastores que encontro no caminho; o olhar das ciganas que alimentam os filhos ao lado das carroças
Virginia Woolf – As Ondas (1931)
Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)
Os valores do pluralismo e da diversidade são hoje mais partilhados. Ao mesmo tempo, o espaço de liberdade democrática torna viáveis as oposições às novas normas que legitimam o pluralismo, a diversidade ou a igualdade entre humanos. Nada é por isso um dado adquirido, e as grandes mudanças emancipatórias que ocorreram e estão a ocorrer podem facilmente retroceder, em nome de um processo que se reclame ele próprio da liberdade democrática.
Jorge Vala –Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu(2021)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)
Durante e após a II Guerra Mundial, muitos cientistas sociais se perguntaram como fora possível que nações inteiras seguissem líderes não democráticos, com programas de ação de extermínio de outros povos. Foi para responder a esta pergunta que um grupo de investigadores da Universidade de Berkeley concebeu um plano de investigação que começara a ser delineado por Theodor Adorno ainda na Alemanha. A hipótese de partida era a de que os motivos económicos não teriam desempenhado na ascensão do nazismo o papel determinante que na altura (e ainda hoje) se lhes atribui. Para a equipa de Adorno, seria importante explorar o papel do pensamento preconceituoso e autoritário [...] os mesmos autores mostraram que o etnocentrismo estava associado ao conservadorismo e ao autoritarismo, e este a atitudes sociais como a punição forte das pessoas consideradas desviantes, a desconfiança em relação à ciência e a visão do mundo como um lugar perigoso.
Jorge Vala –Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu(2021)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)
No seu relatório, o embaixador Bessa Lopes escreve, após análise do processo: «Não é de excluir que, a coberto de altas diplomacias, houvesse ajuste de contas e de ódios velhos que não cansam.» Uma clara referência ao "velho episódio" entre o irmão gémeo de Aristides, César, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1932, e o famoso conde Tovar, que lhe pedira "o favor" de ser reintegrado após nove anos de disponibilidade, e a quem César informara, por escrito, que para esses casos havia regras estabelecidas (por outras palavras, César não fazia favores a ninguém). Tovar respondeu ao irmão gémeo de Aristides, em carta pessoal que existe no espólio da família Sousa Mendes «pode ser que um dia venha a ter necessidade de mim...». Em 1940, Tovar foi nomeado Relator do Processo Disciplinar contra Aristides de Sousa Mendes. [...]
O embaixador Bessa Lopes escreve também no seu parecer sobre o processo disciplinar: «Note-se que o ministro dos Negócios Estrangeiros [Salazar], designa como Relator do Parecer do Conselho Disciplinar o próprio participante ou denunciante da falta!» Bessa Lopes acrescenta ainda que, para mais, Tovar, «repele a opinião do instrutor do processo [Paula Brito], que propunha uma simples pena de "suspensão de exercício e vencimento de 30 a 180 dias".» Claro que Tovar rejeita essa sanção, pois Salazar tinha sido bem claro ao informar, a 2 de julho, que «o cônsul já foi afastado» e esse era o castigo a que era preciso chegar. Mas Salazar recompensou bem o conde de Tovar por esta preciosa colaboração. Depois deste processo, enviou-o para o "paraíso": primeiro, para Berlim (bem perto de Hitler, com a possibilidade de o ver ao vivo), e depois para o Vaticano (à procura de Deus), o posto mais cobiçado por alguns diplomatas portugueses.
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)
A guerra terminou a 8 de maio de 1945 e o dia 9 de maio foi declarado Dia da Paz. Os chefes dos governos dos países aliados e de outros, para comemorarem a ocasião, fizeram discursos para a nação. Portugal (ou Salazar) não podia ficar atrás, e "naturalmente", pôs-se do lado das nações vitoriosas que se bateram pela democracia, pela liberdade e pela defesa dos direitos humanos. Salazar, que se lembrou dos elogios que lhe foram dirigidos em 1940, erradamente e por engano, pela imprensa estrangeira devido à política de abertura e acolhimento de refugiados", proferiu, na Assembleia Nacional, a 18 de maio, o discurso Portugal , a Guerra e a Paz (in Discursos, Salazar). A parte que mais marcou os gémeos, os meus avôs, começava assim: «Do mais não há que falar. Quaisquer outros na nossa situação acolheriam refugiados, salvariam e agasalhariam náufragos, ajudariam a suavizar a sorte dos prisioneiros, enviariam donativos a necessitados, por dever de solidariedade humana e também para manter no mundo convulsionado por ódios mortais o que poderia ser chama, embora ténue, de caridade, antevisão, embora pálida, da justiça e da paz. Pena foi não termos podido fazer mais.»
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)
O tempo passava, e Aristides não perdia a esperança de que melhores dias viessem, apesar do seu estado de saúde deteriorado, pelo derrame cerebral e pela situação absurda em que se encontrava. Houve quem lhe sugerisse que se dirigisse a um influente amigo de Salazar - António Cerejeira, o cardeal-patriarca. Sempre otimista, o meu avô assim fez. Finalmente, obteve uma resposta: «Que se dirigisse a Fátima e aí rezasse pela intercessão de Nossa Senhora.»
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)
Uma bela noite, um grupo de jovens - Rui Pêgo, Luís António Vitta, António Duarte, e António Campelo, operador da Rádio Renascença -, apareceram em casa de António Variações, onde, por iniciativa própria, mas obviamente com o apoio da Rádio, foram montar um estúdio de gravação. De camisola verde de gola alta, microfone verde, de lenço na cabeça, «e uma data de coisas penduradas, pulseiras, anéis», este abriu-lhes a porta. Era uma figura completamente fora de qualquer contexto habitual, num cenário espantoso, e nenhum deles estava preparado para...aquilo:
- Entrámos e... era tudo verde! Era de cortar a respiração. Tendo nós todos a ideia de que éramos muito informados e moderninhos, a verdade é que eu não estava de todo preparado para entrar numa casa toda verde, e ser recebido por um homem todo vestido de verde [...]
O espanto foi tal, que, segundo conta Rui Pêgo, ele e o António Duarte nem conseguiram falar muito, limitando-se a balbuciar umas amabilidades por ele os ter recebido, e a murmurar qualquer coisa como «vamos lá gravar e tal». Pelo seu lado, António Variações estava nervosíssimo. [...]
- Nervosíssimo mesmo! A única pessoa confortável nesta situação surreal era o Luís Vitta - que também não é uma figura muito normal.
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
No início do giro, endireitava-se, tirava o apito, um dos grandes, e soprava, com cuspo a voar em todas as direcções. Isto era para as crianças saberem que ele tinha chegado. Levava-lhes rebuçados. Elas vinham a correr e ele ia-lhes dando os rebuçados enquanto descia a rua. O bom do G.G. [...]
Mas um dia o G.G. meteu-se numa alhada. O bom do G.G. Encontrou uma miúda pequena nova na zona. E deu-lhe rebuçados. E disse:
- Bem, tu és uma menina muito bonita! Gostava que fosses a minha menina!
A mãe estava a ouvir à janela e desatou a correr aos gritos, a acusar o G.G. de molestar uma criança. Como não conhecia o G.G., os rebuçados e aquela conversa foram demais para ela.
O bom do G.G. Acusado de molestar uma criança.
Entrei e ouvi o Stone a falar ao telefone com a mãe, tentando explicar-lhe que o G.G. era um homem honrado. O G.G. estava sentado à frente do seu móvel, absorto.
Quando o Stone acabou a conversa e desligou, eu disse-lhe:
- Não devias dar graxa a essa mulher. Ela tem uma mente suja. Metade das mães americanas, com as suas queridas ratas e as suas queridas filhinhas, metade das mães americanas tem a mente suja. Ela que se lixe. [...]