[...] ensinaram que a sabedoria de vida se conquista com experiência e solidariedade e não com graus académicos; que os seres humanos, mesmo nas condições mais adversas, não perdem a esperança, o desejo de transcendência e a aspiração de justiça; que há muitos conhecimentos, para além dos académicos e científicos, muitas vezes nascidos nas lutas contra a opressão e a injustiça; que a solidariedade não é dar o que sobra mas o que faz falta; que a sociedade injusta não é uma fatalidade; e que o amanhã não é um futuro abstrato – é o amanhã mesmo.
Se hoje EUA e China lutam pelo papel de potência mundial, numa corrida tecnológica e espacial, há pouco mais de um século eram os britânicos que governavam as ondas, mantendo sob o seu jugo mais de 400 milhões de pessoas, então equivalente a mais de 20% da população mundial [...]
“Império não acabou quando os britânicos fizeram as malas” “Os sinos do templo, eles dizem, volta soldado inglês”, entoou distraidamente o então ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Boris Johnson, dentro do pagode de Shwedagon, o mais sagrado templo budista de Rangun, no Myanmar, em 2017.
Tratava-se da Estrada para Mandalay (1892), um nostálgico poema de Rudyard Kipling sobre um antigo soldado inglês, e as saudades que tinha de uma rapariga birmanesa que beijara. “Provavelmente não é uma boa ideia”, avisou o embaixador britânico ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros, perante as câmaras do Channel 4, calando-o. É que, no que toca ao período colonial, muitos birmaneses recordam sobretudo os massacres cometidos pelos britânicos, suprimindo sucessivas rebeliões.
No entanto, nem sempre a memória se mantém tão viva e o sentimento anticolonial tão forte, salienta Deana Heath. Por um lado, “para garantir que os crimes coloniais ficavam por punir, os britânicos usaram táticas que iam da destruição de documentos a colocar outros num arquivo secreto no Reino Unido, que o Governo britânico só admitiu que existia em 2011”, lembra a historiadora.
Por outro lado, “as ligações culturais entre o Reino Unido e as suas antigas colónias são muito profundas. O que tem sido ajudado pelo facto de as lideranças nacionalistas, os grupos que receberam o poder dos britânicos, serem maioritariamente falantes de inglês e terem uma educação ocidental”, explica. Aliás, para muitos autores, a literatura inglesa foi usada com “máscara de conquista”, uma maneira de “afastar a atenção da brutal natureza do controlo colonial”, reflete. “Este é um exemplo de porque é que o império não acabou quando os britânicos fizeram as malas e partiram” [...]
Outros legados coloniais são menos óbvios, como a generalização da perseguição a pessoas LGBT+. Ao contrário do que se costuma imaginar, não era norma em todos os territórios colonizados antes da chegada dos britânicos. Na Índia, por exemplo, as hijra – hoje chamar-lhes-íamos mulheres trans – tinham um papel respeitado em certas culturas do subcontinente, funcionando quase como sacerdotisas. Mas tudo desapareceu com a introdução da moral Vitoriana, “os britânicos exportaram as suas normas de género por todo o mundo, tornaram-nas lei, porque o género era crucial para o projeto colonial”, explica Heath. “Era, em parte, por outras palavras, a chamada missão ‘civilizadora’ britânica”.
A consciência igualitária dos Europeus só foi despertada após o genocídio de judeus, ciganos, negros e outras minorias consideradas desviantes, em nome da crença nazi na supremacia ariana e na necessidade de a preservar. Esta crença é o protótipo do racismo na história contemporânea. Consideramos racista, a ideologia de acordo com a qual a diversidade humana pode ser agrupada em raças inerentemente desiguais, em que umas têm superioridade e poder sobre outras. Consideramos antirracistas todas as ideias, comportamentos, ou políticas que visam demolir essa ideologia e as suas consequências sociais.
Jorge Vala – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)
No início do giro, endireitava-se, tirava o apito, um dos grandes, e soprava, com cuspo a voar em todas as direcções. Isto era para as crianças saberem que ele tinha chegado. Levava-lhes rebuçados. Elas vinham a correr e ele ia-lhes dando os rebuçados enquanto descia a rua. O bom do G.G. [...]
Mas um dia o G.G. meteu-se numa alhada. O bom do G.G. Encontrou uma miúda pequena nova na zona. E deu-lhe rebuçados. E disse:
- Bem, tu és uma menina muito bonita! Gostava que fosses a minha menina!
A mãe estava a ouvir à janela e desatou a correr aos gritos, a acusar o G.G. de molestar uma criança. Como não conhecia o G.G., os rebuçados e aquela conversa foram demais para ela.
O bom do G.G. Acusado de molestar uma criança.
Entrei e ouvi o Stone a falar ao telefone com a mãe, tentando explicar-lhe que o G.G. era um homem honrado. O G.G. estava sentado à frente do seu móvel, absorto.
Quando o Stone acabou a conversa e desligou, eu disse-lhe:
- Não devias dar graxa a essa mulher. Ela tem uma mente suja. Metade das mães americanas, com as suas queridas ratas e as suas queridas filhinhas, metade das mães americanas tem a mente suja. Ela que se lixe. [...]
Em França, os crimes contra a Humanidade não prescrevem, e em 1997 começou o célebre Processo Papon, justamente em Bordéus. No termo deste processo, Maurice Papon, secretário-geral da Gironda entre 1942 e 1944 sob o regime de Vichy, foi considerado responsável pela deportação de milhares de franceses por serem judeus. Na sua defesa diz que «cometeu os "tais crimes" apenas porque obedeceu a ordens superiores [...] portanto devia ser considerado inocente». É então que aparecem observadores, entre eles o Père Bernard, que vêm clamar que na mesma cidade de Bordéus, em 1940, houve um cônsul que desobedeceu às ordens dos seus superiores para não colaborar em «chacinas». Maurice Papon foi condenado em 1998 pela justiça francesa a dez anos de prisão por cumplicidade em crimes contra a Humanidade, pois devia ter tido em consideração o aspeto moral das ordens recebidas, e devia ter desobedecido.
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)
Lucie Matuzewitz continua a sua narrativa: «Um dia, o meu marido, Joseph, conheceu um rabino de barba e cabelo ruivo, que pelas longas tranças mostrava ser muito ortodoxo e tradicional do ponto de vista religioso, e que lhe disse algo de muito espantoso: "Imagine que há dias fui abordado pelo cônsul de Portugal em Bordéus, que me perguntou onde é que estava alojado. Respondi-lhe que infelizmente estava a dormir em cima de um banco, na sala de espera da estação de caminhos de ferro, com a minha mulher e cinco filhos. O cônsul respondeu que compreendia a situação que os judeus estavam a viver, devido às mentiras que os nazis andavam a espalhar acerca das pessoas da nossa religião, e como tal ofereceu-me hospitalidade na sua própria casa - venham morar em minha casa, convidou. Desde há vários dias que estamos a viver em casa do cônsul, que é de uma amabilidade extrema connosco, e que me disse para ir aos lugares públicos da cidade e dirigir-me aos refugiados que querem sair de França para os informar de que ele dará vistos para Portugal a todos os que o desejarem." O cônsul explicou que não tinha autorização para o fazer, pois só podia passar vistos a quem já tivesse bilhete ou passagem para outro país fora da Europa, o que obviamente não é o caso para a grande maioria das pessoas. Disse saber que iria perder o seu lugar, mas daria a Portugal a honra de receber refugiados da nossa religião, podendo assim apagar os crimes dos anos 1496, quando Portugal e a Inquisição expulsaram os judeus, tal como fez Espanha.
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)
Filipa anda a aprender a convencer-se de que o ano de 2017 «não conta». Porque esse era o ano em que planeara concluir uma série de etapas na sua vida. Estava matriculada no mestrado em Solicitadoria de Empresas e inscrita para entrar na Ordem dos solicitadores. Devia ter feito estágio entre Junho e Dezembro, para poder ir a exame em Março, mas o internamento, os ferimentos, deitaram os planos por terra. O mestrado ficou parado. «Dois mil e dezassete era para encerrar tudo isto, sempre fiz tudo certinho», lamenta-se. Tal como lamenta a ausência tão prolongada da serração onde trabalhava no escritório. «Estou a faltar há dez meses», diz, com as lágrimas a saltarem-lhe novamente dos olhos. «É muito tempo. Tinha tudo programado, tinha estudos, tinha a Ordem...»
No hospital não dão previsões para o dia em que a fisioterapia não será mais necessária. Ou em que não terá de gastar um boião de um quilo de creme hidratante em apenas quatro dias. É um dia de cada vez. E ela aguenta, apesar das dores e das lágrimas.
Patrícia Carvalho – Ainda aqui estou (2018)
Fundação Francisco Manuel dos Santos e Patrícia Carvalho (2018)