A conversa foi maciça de banalidades apoiadas por um lento cabecear do criado, que parecia sair das trevas com as suas luvas brancas, mais no jeito de estrangular um convida do que de servir-lhe o fricassé.
Agustina Bessa-Luís –Fanny Owen(1979)
Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)
Imagine que é convidado a responder à seguinte pergunta: «Em que medida considera que as pessoas negras e as pessoas brancas em Portugal são muito diferentes, diferentes, semelhantes ou muito semelhantes no que se refere aos valores que ensinam aos filhos?» Imagine que seguidamente teria de responder à mesma questão, agora relativamente ao grau de preocupação que brancos e negros têm com o bem-estar das famílias, a religião, a educação das crianças, os comportamentos sexuais, etc. Esta questão foi objeto de estudo numa pesquisa, já citada, realizada nos anos 90, no quadro do Eurobarómetro. Os resultados mostraram que, quanto mais os respondentes acentuavam as diferenças culturais entre os cidadãos dos países inquiridos e os imigrantes de países não-europeus, considerando-os culturalmente muito diferentes, mais manifestavam racismo biológico e mais consideravam que os imigrantes - por exemplo, pessoas negras no caso de Portugal - eram incapazes de se adaptar à sociedade de acolhimento [...] à primeira vista acentuar ou exagerar as diferenças culturais não pareceria estar relacionado com racismo tradicional e discriminação. Contudo, os resultados são claros e têm mostrado consistência ao longo de 30 anos de pesquisa. A preocupação de Lévi-Strauss tinha razão de ser: a associação subtil entre diferença e inferioridade é prova disso.
Jorge Vala –Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu(2021)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)
No início do giro, endireitava-se, tirava o apito, um dos grandes, e soprava, com cuspo a voar em todas as direcções. Isto era para as crianças saberem que ele tinha chegado. Levava-lhes rebuçados. Elas vinham a correr e ele ia-lhes dando os rebuçados enquanto descia a rua. O bom do G.G. [...]
Mas um dia o G.G. meteu-se numa alhada. O bom do G.G. Encontrou uma miúda pequena nova na zona. E deu-lhe rebuçados. E disse:
- Bem, tu és uma menina muito bonita! Gostava que fosses a minha menina!
A mãe estava a ouvir à janela e desatou a correr aos gritos, a acusar o G.G. de molestar uma criança. Como não conhecia o G.G., os rebuçados e aquela conversa foram demais para ela.
O bom do G.G. Acusado de molestar uma criança.
Entrei e ouvi o Stone a falar ao telefone com a mãe, tentando explicar-lhe que o G.G. era um homem honrado. O G.G. estava sentado à frente do seu móvel, absorto.
Quando o Stone acabou a conversa e desligou, eu disse-lhe:
- Não devias dar graxa a essa mulher. Ela tem uma mente suja. Metade das mães americanas, com as suas queridas ratas e as suas queridas filhinhas, metade das mães americanas tem a mente suja. Ela que se lixe. [...]
E ele era uma figura apaixonante no deserto desta cidade tão provinciana na época, com uma meia de cada cor, os roupões, o fato-macaco, os sapatos diferentes, o visual tão criativo e tão fantástico.
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
falou de um amigo que vinha de Amesterdão, queria trabalho, « e só você é que lhe pode dar, porque tem um projeto moderno». Com essas especificidades, António dava-lhe garantias quer em termos técnicos, quer profissionais. Por outro lado, «era rigoroso, não chegava atrasado, não faltava»; era «muito simpático com os clientes»; «não falava alto»; e, apesar da sua aparência exótica, «era uma pessoa dócil, muito simples, educadíssimo, calmo»
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
Também davam longos passeios à beira-mar, que António tanto apreciava, e costumavam ir para o 2001, em Cascais, onde ficavam a dançar toda a noite:
- O António não se drogava, não fumava e não bebia bebidas alcoólicas. Eu também não. Quer dizer, bebia, mas nada de exageros. Mas toda a gente pensava que sim, porque passávamos a noite aos pulos.
Um outro amigo da época, o Paulo, mais tarde ligado ao cinema, lembra-se de o ver na Fonte da Telha, à Caparica, imóvel no areal deserto a fazer ioga. «Punha-se de cabeça para baixo, pés e pernas para cima, apoiado nos braços, em frente ao mar, a meditar.»
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Uma reflexão à distância dos anos, mas que mantém a sua acuidade. O artista plástico Leonel Moura, que descreve o meio cultural português como «extremamente conservador, tal como a sociedade portuguesa no seu todo», escalpeliza a ilusão que persiste até hoje, nesse circuito, de que é tudo muito avançado e são todos muito vanguardistas: «isso é uma rematada «mentira», pois o formalismo impera, quer nas relações entre as pessoas, quer na forma como se vestem e comportam. E no extremo oposto, cai-se no «ordinário»
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
Acabada a escola, tinham à sua espera o complemento do trabalho familiar. Dar de comer ao gado, ajudar no campo, e mais e mais. Todos os dias. Os relatos sobrepõem-se e não chegam do fundo dos tempos. São frescos de uma arrepiante contemporaneidade:
- Lá em casa dividíamos uma sardinha por quatro.
- Nós dividíamos uma sardinha por sete.
- Eu passei muita fome.
[...]
- Mas quando tocava a brincar, era uma alegria! Era tudo da nossa imaginação e do nosso engenho. Dançávamos, cantávamos, bailávamos. Foram tempos que ninguém sonha como eram. E, contudo, éramos alegres, divertíamo-nos com nada, construíamos os nossos brinquedos. Tristes das crianças de hoje a quem entregam tudo feito e não aprendem a sonhar.
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)