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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

cassetes [que funcionavam]

22.03.22

Em meados dos anos de 1990, quando era estudante e frequentava en passant as já referidas cadeiras de Marketing, costumava arriscar uma imitação tosca das intervenções sibilantes de Carlos Carvalhas, então secretário-geral do Partido Comunista Português, martelando as mesmas teclas que o Comité Central gostava de tocar à época: «O Governo destruiu o aparelho produtivo nacional, sacrificou a nossa agricultura, as nossas pescas e os mais importantes sectores industriais, tudo isto num cenário de dificuldades para os portugueses; eis-nos então perante um ministro das Finanças feito mestre-escola comunitário, a quem cabe distribuir o cacete, reservando a cenoura para o primeiro-ministro». Em suma, os critérios de Maastricht e as decisões políticas condenaram-nos a ser um país servil, de empregados de mesa, com um paninho de loiça pendurado no braço [...] (já a referência explícita ao cacete está documentada nas actas da Assembleia da República de 13 de Fevereiro de 1992), mas, enfim, percebe-se a ideia. Nessa altura, o país dava mesmo os primeiros passos em direcção a uma terciarização acelerada. 

 

Pedro Vieira – Em que posso ser útil? (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pedro Vieira (2021)

 

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in https://m.facebook.com/umempregadodemesatambemchora/

 

alma empoleirada

20.01.22

... não preciso de palavras nem de nada arrumadinho [...]

«O silêncio é bem melhor; a chávena de café, a mesa. É bem melhor sentar- -me sozinho, como uma gaivota solitária que se empoleira num poste e abre as asas a todo o comprimento.

 

Virginia Woolf – As Ondas (1931)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

vizinhança (ou as verdadeiras selvas)

09.06.21

No adro deram-lhe água; a vizinha cujo carro, segundo Angelina, «rodou toda a noite» também lhe levou pão e água, numa das vezes que ali regressou. De manhã, deixou-a em casa, fez-lhe o café com leite que a mulher não tomara na noite anterior, mas a velha mulher não se sente grata. Semanas depois deu pela falta de uma série de bens. Convenceu-se de que foi a vizinha que, naquela noite, lhe ficara com a chave de casa a responsável pelo roubo. Chegou a fazer queixa na GNR, mas diz que o processo não avançou. Hoje chora mais pelas coisas perdidas do que pelo receio do fogo. 

 

Patrícia Carvalho – Ainda aqui estou (2018)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Patrícia Carvalho (2018)

 

 

soar

07.06.21

Entretanto, ninguém parecia entender o que o António queria e eu pedi: deixem-me ficar sozinho com ele, vão tomar um café. Ele queria fazer uma versão do «Povo Que Lavas no Rio», o que era muito corajoso. Pegar numa coisa da Amália, já é corajoso, mas logo aquela! Eu pergunto-lhe, António, queres que isto soe como? E ele diz aquela frase emblemática:

«Entre Nova Iorque e a Sé de Braga.»

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

 

à volta de um homem

11.01.21

«A primeira coisa que eu gostei em ti», disse Lydia, «foi não teres uma televisão em tua casa. O meu ex-marido via televisão todas as noites e durante todo o fim-de-semana. Tínhamos até que fazer amor em função dos horários dos programas.»

«Hum...»

«Outra coisa que me agradou em tua casa foi a imundície.[...] 

« Tu julgas um homem pelo que está à sua volta, não é?»

«Claro. Quando vejo um homem com uma casa limpa, sei que há qualquer coisa que está mal. E se for demasiado limpa, é porque é bicha.» 

 

Charles Bukowski – Mulheres (1978)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2003)

 

 

brilho

23.04.20

E eu pensava que a vida brilha quando descobrimos uma pessoa nova. É de espantar que haja tanta gente por descobrir e a vida não brilhe sempre. 

 

Afonso Reis Cabral – Pão de Açúcar
Publicações Dom Quixote (2018)

 

 

sistema fixo

27.08.19

(...) peixe voador fodido estrebuchando. Vago.

Eco único irredimível. Sob

as folhas murchas dos aerop DESPACHEM-SE hortos

                                                                                              [consum

idos em moralizar um sistema corrupto. Fixo.

 

 

Paulo da Costa Domingos in ARA

 

 

Paulo da Costa Domingos – Carmina (1971-1994)
Antígona (1995)

 

 

 

amor, eu sei que vives

07.03.19

Dou-te um nome de água

para que cresças no silêncio.

 

Invento a alegria

da terra que habito

porque nela moro.

 

Invento do meu nada

esta pergunta.

(Nesta hora, aqui.)

 

(...)

 

Amor, eu sei que vives

num breve país.

 

Os olhos imagino

e o beijo na cintura,

ó tão delgada.

 

Se é milagre existires,

teus pés nas minhas palmas. 

Ó maravilha, existo 

no mundo dos teus olhos.

 

Ó vida perfumada

cantando devagar.

 

Enleio-me na clara

dança do teu andar.

 

Por uma água tão pura

vale a pena viver.

 

Um teu joelho diz-me

a indizível paz.

 

António Ramos Rosa in Teu Corpo Principia

 

António Ramos Rosa - Obra Poética I 

Assírio & Alvim (2018)