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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

29
Mai23

tapkiano

Cecília

[...] Kafka analisa a situação do marginalizado, vítima de permanente incomunicação. E explora um elemento constante em quase toda a sua obra: o totalitarismo da burocracia. Além disso, evidencia o seu pessimismo face ao humano, o medo da perda da identidade humana e o abandono do instintivo. São questões actuais hoje em dia.

Os fantasmas que perseguem o escritor deram lugar ao adjectivo "kafkiano": tudo o que é absurdo, confuso, obscurecido por uma maquinaria formal ou que se enreda nas redes de burocracias, instituições e papéis. 

 

Franz Kafka – A Metamorfose (1915)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

imagem: https://store.flytap.com/pt/crianca/

 

 

 

27
Abr22

indo (e vindo)

Cecília

As minhas filhas virão passear aqui em verões que ainda não chegaram;

 

Virginia Woolf – As Ondas (1931)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

Bright Horizon, Little Girl and the Sea (2020)

Sofya Mikeworth

 

25
Jan22

(da importância de ouvir boa música)

Cecília

Em vários dos seus estudos, um entrevistador apresentava a crianças negras, entre os 3 e os 7 anos, duas bonecas, uma branca e outra negra. Depois, o entrevistador pedia à criança que escolhesse e lhe entregasse «a boneca com que gostaria de brincar»; a seguir, «a boneca que é bonita»; «a boneca que tem uma cor bonita»; «a boneca que é feia»; «a boneca que se parece contigo», etc. As crianças manifestavam ser sensíveis à cor e saber nomear a sua cor. Cerca de dois terços das crianças indicaram que a boneca que se parecia com elas era a boneca negra, embora um terço tenham declarado que a boneca branca era a que se parecia com elas. Mais de metade das crianças negras disseram que a boneca com que preferiam brincar era a boneca branca, que esta era a boneca bonita e que tinha uma cor bonita. Em consonância, mais de metade disseram que a boneca feia era a boneca negra. Uma análise dos resultados por idades permitiu aos autores proporem que a idade crucial para a interiorização da inferiorização racial ocorria entre os 4 e os 5 anos de idade. Estes resultados assumem um significado muito importante, pois revelam que as crianças interiorizam desde cedo as mensagens de inferiorização veiculadas pelo contexto social.

Os estudos dos Clark não tiveram grande impacto científico na altura, mas os resultados obtidos foram fundamentais para o testemunho que os Clark elaboraram para o Supremo Tribunal dos EUA sobre os efeitos da segregação racial nas escolas americanas e, subsequentemente, para a argumentação e decisão deste Tribunal, que aboliu a segregação em 1954 [...] Aqueles estudos constituíram o principal fundamento para o Supremo Tribunal concluir que a segregação racial na escola era prejudicial ao desenvolvimento harmonioso e ao bem-estar das crianças negras e que os contactos entre crianças de cor diferente no contexto escolar poderiam conduzir a relações sociais mais igualitárias e a um melhor desenvolvimento pessoal.

 

Jorge Vala – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

 

01
Jun21

[ a ] criançada [sim]

Cecília

Alguém compreende a sede de uma pedra?

Quem estuda a felicidade? Quem define um jardim?

Que linguagem é a do espaço? O que é o sal da sombra?

 

António Ramos Rosa in NO CENTRO DA APARÊNCIA - Obra Poética I

Assírio & Alvim (2018)

 

 

11
Mai21

memória coletiva

Cecília

«No dia 10 de maio de 1940, fomos acordados em sobressalto por um barulho estranho; lá fora estava um belo dia cheio de luz e vimos aviões sobrevoando Bruxelas, largando bombas que pareciam grandes objetos cor de prata, brilhando ao sol. Ao ligarmos a rádio, ouvimos dizer que a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo tinham sido invadidos na vèspera pela Alemanha e a população era convidada a manter-se à escuta para ouvir outras informações» [...] Foi assim, de surpresa, como era próprio da Blitzkrieg. Não se avisava ninguém e era só avançar, aterrorizando e esmagando o povo invadido. Os belgas, os franceses e outros povos voltavam 20 anos para trás. As estradas tornaram a encher-se de famílias que levavam alguns bens que na desgraça lhes pudessem valer, e alguns alimentos. Os belgas dizem que dois milhões de compatriotas seus se puseram em fuga. Outros falam em dois milhões e meio.

Nesta sua crónica mais tarde transformada em livro, Lucie Matuzewitz continua a descrever a sua odisseia [...] «Apanhámos o último comboio que saía para Paris; os comboios seguintes foram bombardeados e nunca chegaram ao destino. As estradas estavam completamente bloqueadas com automóveis dirigindo-se para sul [...] havia aviões que metralhavam em voo picado os refugiados que caminhavam ao longo das estradas [...] passámos uma noite muito agitada, porque uma bomba caiu ao lado da Torre Eiffel, perto do nosso hotel [...]. Decidimos ir para Bordéus. Infelizmente, poucos dias depois todo o governo francês estava nesta cidade. Uma nuvem de refugiados vindos do norte de França, da Bélgica, da Holanda, deambulava agora pelas ruas, dormindo nos parques e nas estações, não encontrando alojamento [...].»

 

António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto
Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes  (2017)

 

 

09
Dez20

certeiro

Cecília

A seguir foram almoçar, e a lindíssima Lena ficou no meio dos dois, Variações à esquerda, Marco Paulo à direita. Um cantor recém-chegado e o artista consagrado e famosíssimo. Mas as pessoas, sobretudo as senhoras e as miúdas que entravam, iam direitas ao António a pedir-lhe autógrafos, e não olhavam para mais nada nem para mais ninguém:

- Ele era de tal maneira flashante que tudo o resto se apagava. Durante o almoço, o Marco quis mostrar que estava um bocadinho ciumento e sentido, mas na boa, porque é uma excelente pessoa. A brincar disse, António, qualquer dia ainda ponho uma bomba no teu carro! Uma cena de puto. E o António só lhe diz, mas qual carro? e desarmou-o completamente. Passados uns segundos, o Marco, que sentiu que se calhar tinha ido um bocadinho longe de mais, responde: Ó António, eu amo-te. Foi tão bonito. O António não falava muito, mas tinha um humor tão subtil, era terrivelmente certeiro, e ainda por cima não tinha mesmo carro, nem guiava, nem queria saber disso, gostava era de andar a pé. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)

Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

26
Ago20

sonho e memória

Cecília

Acabada a escola, tinham à sua espera o complemento do trabalho familiar. Dar de comer ao gado, ajudar no campo, e mais e mais. Todos os dias. Os relatos sobrepõem-se e não chegam do fundo dos tempos. São frescos de uma arrepiante contemporaneidade:

- Lá em casa dividíamos uma sardinha por quatro. 

- Nós dividíamos uma sardinha por sete.

- Eu passei muita fome.

[...]

- Mas quando tocava a brincar, era uma alegria! Era tudo da nossa imaginação e do nosso engenho. Dançávamos, cantávamos, bailávamos. Foram tempos que ninguém sonha como eram. E, contudo, éramos alegres, divertíamo-nos com nada, construíamos os nossos brinquedos. Tristes das crianças de hoje a quem entregam tudo feito e não aprendem a sonhar. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)

Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

 

14
Out19

let bloom (don't blow)

Cecília

Eu era teimosa, ele era teimoso. Não me lembro do motivo, sei que nos pegámos os dois. Eu era muito mais pequena, devia-me ter calado. Mas começámos à tareia e o meu pai não gostou. Deu uma tareia nele. Eu fugi  e meti-me debaixo da cama. O meu pai procurou-me até ao fim, não tas vou perdoar. E depois, a tareia que tinha dado ao António deu-me a mim também - relato de Maria Amélia. 

Mas não há memórias que o descrevam a subir às árvores para ir aos ninhos, ou outras tropelias de miúdos. Já João, o mais velho, meteu um belo dia a irmã dentro de uma arca e esqueceu-se dela. Maria de Lurdes ia morrendo asfixiada, enquanto ele, aflito, a procurava sem se recordar onde a fechara dessa vez. Outra vez, guardou a irmã Amélia, uma criança minúscula, e ainda hoje uma mulher muito pequenina, dentro de uma mala de viagens. Depois pôs-se a correr pelo quintal, abanando a mala de um lado para o outro, até que ela se abriu e deixou cair a miúda completamente atordoada no meio do canteiro das alfaces. António, contudo, não deixou na memória dos irmãos episódios semelhantes:

- Desde muito miúdo já dizia que queria ser músico. Cantava as cantigas que ouvia na rádio e outras que inventava ele próprio (...) E a minha mãe assim: Toninho, vai cortar um bocadinho de erva para os coelhos, e ele: haviam de morrer todos! Sentava-se no quintal e começava a cantar. E a minha mãe: A erva para os coelhos, António? E ele, ó está bem, está bem! - Maria Amélia Ribeiro Costa recordá-lo-á, para sempre, ensimesmado e misterioso, muito solitário e sempre à procura de espaço para abrir a voz. - Ele já tinha dom. Nasceu com ele. Ele era diferente. Foi sempre diferente de nós todos. Vinha de férias e não gostava que ninguém o perturbasse. Há um penedo em cima, do outro lado da rua, ele sentava-se ali, muitas vezes, a escrever. Dizia: Vou para ali para cima. Não quero que ninguém chame por mim. Se alguém vier, eu não estou para ninguém. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

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