Ele volta ao quarto. Ela estava ali, por trás da espessura das paredes. Ele quase se esquece da sua existência sempre que volta do mar [...]
Talvez ela não durma. Ele não quer acordá-la, força-se a não o fazer, olha-a. O rosto está abrigado, debaixo da seda preta. Só o corpo nu está na luz amarela, mártir.
[...] perto daquela hora, com a vinda do dia vem a infelicidade [...]
Ele aproxima-se dela, olha para o lugar da frase que faria com que ele a matasse, ali, na base do pescoço, nas redes do coração [...]
Ela manifestamente não viu o barco. Não ouviu o seu barulho. Ignora tudo sobre o barco porque simplesmente dormia quando o barco passou. Tanta inocência faz com que ele lhe pegue na mão e a beije.
Ela ignora que passou a ser aquela que não sabe [...]
Marguerite Duras – Olhos Azuis, Cabelo Preto (1986)
Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)
Sou um rapaz com um fato de flanela cinzenta. Ela encontrou-me. Toca-me na nuca. Beija-me. Tudo se desmorona [...] Qual a coisa que faz mexer o meu coração, as minhas pernas? Foi então que aqui cheguei e te vi, verde como um arbusto, como um ramo, muito quieto, Louis, com os olhos vítreos. «Estará morto?», pensei, e beijei-te. Por baixo do vestido cor-de-rosa, o meu coração saltava, semelhante às folhas, que, e muito embora nada exista que as faça mexer, não param de oscilar. Agora, chega-me ao nariz o odor a gerânios; chega-me ao nariz o odor a terra vegetal. Danço. Ondulo. Deixo-me cair sobre ti como uma rede de luz. Deixo-me ficar deitada em cima de ti, a tremer.
Virginia Woolf – As Ondas (1931)
Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)
Este registo de pecados devia ser um registo de pensamentos. Não são pecados: são pensamentos. Pensamentos que uma pessoa deve ter para se perguntar acerca das coisas.
Então, Manoel solta os freios das cerimónias, agarra-a pela cintura e, antes de a beijar, diz-lhe que as doidices de Lisboa não são nada, ao pé da doidice que ele tem por ela. Olha que estás a desfazer-me o chignon... Pois desfaço-to mesmo!
Acabam por comer a canja fria, o Manoel de camisa esgargalada e fora das calças, a Juliana de cabeleira desfeita e chambre chinês
Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)
Ela cala-lhe os protestos com um beijo e quer que ele lhe diga se a ama verdadeiramente. Ele jura-lhe que sim e para sempre. E os amores que teve por esse mundo fora?... Amores não, mulheres. Nunca lhe falou nisso porque foram coisas sem rasto e, para casar, escolheu-a a ela.
Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)