Ele volta ao quarto. Ela estava ali, por trás da espessura das paredes. Ele quase se esquece da sua existência sempre que volta do mar [...]
Talvez ela não durma. Ele não quer acordá-la, força-se a não o fazer, olha-a. O rosto está abrigado, debaixo da seda preta. Só o corpo nu está na luz amarela, mártir.
[...] perto daquela hora, com a vinda do dia vem a infelicidade [...]
Ele aproxima-se dela, olha para o lugar da frase que faria com que ele a matasse, ali, na base do pescoço, nas redes do coração [...]
Ela manifestamente não viu o barco. Não ouviu o seu barulho. Ignora tudo sobre o barco porque simplesmente dormia quando o barco passou. Tanta inocência faz com que ele lhe pegue na mão e a beije.
Ela ignora que passou a ser aquela que não sabe [...]
Marguerite Duras – Olhos Azuis, Cabelo Preto (1986)
Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)
Mal o barco foi avistado, o rei fez-se conduzir ao porto numa carruagem. Assim que viu a noiva, deixou para trás toda a tristeza. Depois foi para o palácio organizar uma grande festa de casamento que durou duas semanas. Quando esta terminou, o rei foi viajar pelo reino para recolher impostos.
Francisco Vaz da Silva – Gata Borralheira e Contos Similares (2011) Círculo de Leitores e Temas e Debates (2011)
O criado, de libré, calção de baeta e meia branca, vem anunciar que está lá fora o Raimundo, aprendiz do Convento. Dona Beatriz poisa o bastidor. Que o mande entrar para o vestíbulo. Quem é? - pergunta dom António, atrás da Gazeta de Lisboa de há três dias. O Raimundo da Anunciação, um rapaz de muito talento, ajudante de mestre Cyrillo, que nos pintou aquele fresco no coro da capela, vai para dois anos.
Raimundo da Anunciação compôs quanto pôde o fato coçado, limpou da lama os sapatos cambados e as solas rotas vê-las-ia o chão se tivesse olhos. Dobra a magreza numa vénia angulosa e, com perdões pelo incómodo, atira-se à descrição das misérias, as suas e as dos outros três ajudantes da escola de artes que, aliás, já se preparam para abalar. Suas majestades partiram, como Vossa Excelência sabe, e deixaram por pagar mestres e ajudantes. Bem, os mestres foram para Lisboa, onde há sempre quem lhes encomende um retábulo, um retrato, seja quem for que por lá mande. Mas nós, minha senhora, estamos à esmola de uma sopa e temos à nossa guarda coisas preciosas, enfim, obras acabadas ou começadas por mestre Cyrillo, do Taborda, do Calisto, do Piolti, do Sequeira, do Machado de Castro, até uma escultura de mestre Giusti das últimas que fez antes de cegar (...) Muita coisa vai na carga dos barcos para o Brasil - acrescenta. - Até aqueles seis quadros sobre a conquista da Índia, mas não puderam levar tudo.
Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)
(...) o objecto que desenharia de melhor vontade, disse, era uma daquelas pequenas âncoras de quatro braços chamadas «fateixas», que usam os barcos de pesca. Apontou-me algumas ao passarmos junto dos barcos atracados ao cais, e explicou-me as dificuldades que apresentavam os quatro ganchos para se desenharem nas várias inclinações e perspectivas. Compreendi que o objecto continha uma mensagem para mim, e que eu tinha de decifrá-la: a âncora, uma exortação para me fixar, para me agarrar, para fundear, pondo fim ao meu estado flutuante, ao meu boiar à superfície. Mas esta interpretação podia dar azo a dúvidas: podia ser até um convite a zarpar, a fazer-me ao largo. Algo na forma da fateixa, os quatro dentes achatados, os quatro braços de ferro gastos pelo roçar nas rochas do fundo, advertiam-me que qualquer decisão não seria isenta de abalos e sofrimentos.
Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)