Há, em sítios com milhares de pessoas, um anonimato que pode ser ou não conveniente. Nas cidades pequenas, pelo contrário, todos têm nome e vão ganhando uma etiqueta.
Rita Pereira Carvalho –As Invisíveis, Histórias sobre o trabalho de limpeza(2022)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Rita Pereira Carvalho (2022)
Cindy said, "Mrs.Kitteridge, did you get married? Tom said he heard you married Jack Kennison [...] She said, "Yes, it's true. I have married Jack Kennison." [...] we're both old enough to know things now, and that's good."
"What things?"
"When to shut up, mainly"
"What things do you shut up about?" Cindy asked [...] "Well, for example, when he has his breakfast, I don't say to him, Jack, why the hell do you have to scrape your bowl so hard" [...] Imagine at my age, starting over again [...] "But it's never starting over, Cindy, it's just continuing on."
Elizabeth Strout – Olive, Again (2019) Penguin Random House UK (2019)
Tem 19 anos e, além de ser a mulher mais jovem daquelas noites, foi a única que não quis que o seu nome fosse identificado. Escolheu ser Vanessa [...]
São cinco da manhã e Vanessa está no meio de outras mulheres [...] Tem outras coisas que lhe ocupam a cabeça. A filha que deixou em casa de uma amiga é uma delas. Está constipada. [...] Todos os cêntimos do seu ordenado mínimo contam e, no fim do mês, o dinheiro não estica para pagar a casa, contas, creche e outras despesas com a filha, que não tem o pai presente [...]
A entrada de Vanessa no mundo das limpezas coincidiu com a altura em que teve a filha, há um ano. Não tinha alternativa senão encontrar um emprego o quanto antes [...]
«Nunca fui boa na escola, nunca me interessei pela escola, se soubesse o que sei hoje tinha sido diferente, não faltava às aulas e percebia que aquilo me podia dar dar alguma coisa. Mas com 15 anos não pensamos e depois fiquei grávida, tinha de arranjar dinheiro para ter no final do mês. Acha que alguém me queria noutro lado sem o 12º ano? Só a limpar escadas», conta. Hoje, olha para trás com pena de não ter feito mais. Aceita o que tem agora com alguma raiva, mas com a certeza de que é para a filha que está a fazer o sacrifício de ter um trabalho do qual não gosta. «Não quero que tenha o mesmo futuro que eu», repete. [...]
Antes de entrar no autocarro e desaparecer, as palavras de Vanessa são perentórias: «Eu é que me meti nisto.»
Rita Pereira Carvalho – As Invisíveis, Histórias sobre o trabalho de limpeza (2022)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Rita Pereira Carvalho (2022)
John Francis Bongiovi, Jr. (Perth Amboy, 2 de março de 1962)
[...] ensinaram que a sabedoria de vida se conquista com experiência e solidariedade e não com graus académicos; que os seres humanos, mesmo nas condições mais adversas, não perdem a esperança, o desejo de transcendência e a aspiração de justiça; que há muitos conhecimentos, para além dos académicos e científicos, muitas vezes nascidos nas lutas contra a opressão e a injustiça; que a solidariedade não é dar o que sobra mas o que faz falta; que a sociedade injusta não é uma fatalidade; e que o amanhã não é um futuro abstrato – é o amanhã mesmo.
Entre formação e atendimento propriamente dito, Ricardo trabalhava para a Livingbrands Portugal há três meses, altura em que lhe propuseram subir de patamar. Deixaria para trás os telefones e os tablets e passaria a dar assistência a quem comprava computadores, portáteis e de secretária. «Foi a partir daí que as coisas começaram a correr muito mal para o meu lado.» A mudança de funções implicou uma semana de formação específica e um crescimento na exigência do serviço a prestar, sem qualquer melhoria na remuneração. «Achavam que ficávamos gratos pela simples aposta em nós.» Mas foi o aumento da pressão que acabou por arruinar a experiência de trabalho de Ricardo. «Comecei a ter de lidar com problemas muito mais complexos, e eu achava que não tinha apoio nem competências suficientes para os resolver. Ao fim de pouquíssimo tempo, disse-lhes que a coisa não estava a resultar, partilhava com eles as minhas inseguranças, e eles mandavam-me continuar: "Está tudo a correr bem, não te preocupes."» Dada a elevada rotatividade de funcionários desde as fases mais embrionárias do processo, os responsáveis tentam responder às crescentes solicitações e aos objectivos da Apple com a matéria-prima que têm à mão, com aqueles que se aguentam há dois, três meses. Nesta fase, e tendo em conta as saídas constantes, acabam por ser encarados quase como seniores do serviço de apoio ao cliente. «Eu achava que não estava a corresponder e comecei a entrar mesmo em stress, sentia dores de cabeça terríveis - sempre as tive, mas ali agravaram-se -, sentia ansiedade, pânicos.»
Pedro Vieira – Em que posso ser útil? (2021)
Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pedro Vieira (2021)
A arbitrariedade da ideia de raça e do seu uso pode ser bem compreendida através de uma intervenção pedagógica de uma professora americana do ensino básico preocupada em fazer entender aos seus alunos o racismo e a discriminação. Um dia, Jane Elliot informou as crianças suas alunas de que havia grandes diferenças entre as crianças com olhos castanhos e aquelas que tinham olhos azuis. As de olhos azuis seriam mais trabalhadoras, mais inteligentes e melhores pessoas do que as crianças que tinham olhos castanhos. Jane Elliot deu aos alunos vários exemplos disto mesmo e conseguiu criar um sentimento de orgulho e satisfação nas crianças de olhos azuis e de abatimento e raiva nas de olhos castanhos. Ao mesmo tempo, nos membros de cada grupo emergiu um sentimento de destino comum: somos um grupo superior ou, no outro caso, um grupo inferior. A situação foi vivida como verdadeiramente dramática por uns e gloriosa por outros. No dia seguinte, porém, a professora disse às mesmas crianças que se havia enganado. Afinal, os melhores eram os de olhos castanhos. As reações emocionais não se fizeram esperar, os satisfeitos de ontem eram os infelizes de hoje. Após um tempo para que a nova hierarquia produzisse os seus efeitos, a professora interrompeu a atividade das crianças, chamou-as para junto de si e ajudou-as a refletir sobre o que se passou: sobre a ideia de raça, a arbitrariedade, a opressão e o que significava ser uma criança negra. Vinte anos depois, os adultos que eram estas crianças ainda recordavam a situação, as experiências vividas e o impacto que tiveram nas suas vidas.
Jorge Vala –Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu(2021)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)