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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

subliminarmente mergulhados

05.02.22

Em Portugal, como noutros países, as pessoas negras são consistentemente associadas a violência e isso tem consequências vitais para elas. Muitos leitores lembrarão o caso de Amadou Diallo, um imigrante guineense negro que foi abordado pela polícia de Nova Iorque em fevereiro de 1999 e recebeu instruções para não se mexer. Porém, Diallo levou a mão ao bolso para tirar a carteira com a identificação. Esse gesto foi confundido com o sacar de uma arma. Foi morto com cerca de 40 tiros. Vejamos a este propósito uma linha de pesquisa experimental replicada em vários países, incluindo Portugal, com a participação de estudantes universitários brancos.

Nesta linha de pesquisa, é pedido aos participantes que identifiquem um objeto (uma arma ou uma ferramenta) que é apresentado no ecrã do computador por um brevíssimo espaço de tempo. As respostas são registadas como certas ou erradas. Acontece que antes de o objeto (arma ou ferramenta) ser apresentado no ecrã é colocado no mesmo ecrã ora a foto de uma pessoa negra ora a de uma pessoa branca. Isto é feito de forma tão rápida que os participantes não se dão conta da foto - uma exposição subliminar. O que se verifica é que os participantes brancos confundem mais vezes uma ferramenta com uma arma quando subliminarmente são expostos à foto de um negro. De forma inversa, quando uma arma aparecia na sequência de uma foto de um branco era mais vezes confundida com uma ferramenta. Se com os resultados desta experiência refletirmos sobre o assassinato de Amadou Diallo, apreenderemos melhor o potencial de violência inscrito nos estereótipos.

 

Jorge Vala – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

 

velho sistema instagram

18.11.20

Na cidade, as propostas para mobilar as casas estão recheadas de produtos fantásticos. Frigoríficos cheios de comida pronta a ser confeccionada. Aspiradores, que permitem que a dona de casa rodopie pelo seu lar, limpando-a como quem brinca. Máquinas de lavar roupa, que evitam a canseira dos tanques onde à força de braços e mãos que esfregam, torcem, batem, na faina das barrelas domésticas, se lavam as roupas da casa. Panelas de pressão, que conseguem amaciar o mais rijo naco de carne, enquanto o diabo esfrega um olho. Na cidade, as tarefas domésticas diárias, a acreditar nos maravilhosos anúncios, são meros passatempos que lindas mulheres praticam alegremente. E toda a gente parece resplandecer de asseio. Já no campo, um luxo chama-se telefonia. Um sonho chama-se telefone. Visitas extemporâneas e de última hora... não existem. Visitas só a do padre ou a do médico. Não costumam ser bom sinal. Vizinhos? Ajudam-se, mutuamente, quando é preciso, mas ninguém entra pela casa de ninguém a pedir comida e a reclamar jantares: era só o que mais faltava. E os gestos quotidianos - varrer, limpar, cozinhar, arar os campos, pensar o gado, mondar, ceifar, enxertar as árvores, colher os frutos, apanhar caruma, acender a lareira -, são obrigações. Implicam muitas horas de trabalho esforçado, e não se pensa nelas como passatempos. Ter comida para cozinhar, isso sim, é uma alegria. Matar a fome a todos, aí está o verdadeiro prazer. 

Na cidade, famílias ostensivamente felizes têm crianças, quase sempre louras e inevitavelmente lindas, que adoram pudim Royal e «gostam e necessitam de Milo», o fortificante mágico sem o qual as suas pobres cabecinhas encaracoladas tombam de exaustão sobre imaculados cadernos e livros da escola. Mas as cabecinhas das crianças louras ou morenas dos campos, não tombam sobre cadernos e livros imaculados. Se tombarem, uma palmada do professor ou da professora fornece toda a energia de que precisam para se levantarem imediatamente. Portanto, ali o Milo não faz falta nenhuma a ninguém. Até porque o dinheiro não chega para esses luxos... finalmente, no campo, não se fala em beleza o tempo todo, nem se evocam vocábulos como elegância por dá cá aquela palha. De resto, o mais elementar sentido de decência tornaria impensável que as mulheres corressem de braços no ar ao encontro dos seus homens, quando estes chegam a casa, suados, sujos de terra, exaustos de trabalhar, para lhes servirem algo de tão insípido como um estupendo caldo Maggi. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018) 

 

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A refeição do menino

Júlio Pomar