«É no falar que se revelam os príncipes e no coaxar que os sapos se denunciam» [...] «pelo que ao meu amigo lhe aconselho a mais severa abstinência verbal. Não abra a boca que não seja para engolir as moscas.»
O tempo passava, e Aristides não perdia a esperança de que melhores dias viessem, apesar do seu estado de saúde deteriorado, pelo derrame cerebral e pela situação absurda em que se encontrava. Houve quem lhe sugerisse que se dirigisse a um influente amigo de Salazar - António Cerejeira, o cardeal-patriarca. Sempre otimista, o meu avô assim fez. Finalmente, obteve uma resposta: «Que se dirigisse a Fátima e aí rezasse pela intercessão de Nossa Senhora.»
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)
Luís Ribeiro e Maria Adosinda, o irmão e a cunhada, recordam o gozo que António punha em caricaturar algumas das suas clientes mais altivas, até por ter sentido na pele as barreiras sociais que o tinham marcado com o ferro em brasa do desprezo que os citadinos votavam aos rurais. Tinha 11 anos quando, vindo de Fiscal, Braga, desembarcara em Lisboa, mas os irmãos afirmam que, tanto tempo depois ele ainda «sofria com este tipo de coisas». Por outro lado, os relatos também referem, de forma unânime, o cuidado, o carinho, a gentileza que punha no trato com os idosos, e a forma como costumava dizer: «Toda a gente dá um beijinho e uma carícia a um bebé, mas esquecem-se dos idosos, que têm necessidades ainda mais importantes que uma criança, e ninguém lhes liga nenhuma». Era um homem calado, mas irónico, com um pendor satírico que poucos terão conhecido. Os irmãos e os amigos mais chegados recordam que ironizava muito com as coisas. E reagia, perante alguém que pensava que era superior a ele.
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Facilmente, passa-se do hedonismo à arrogância com que cada um vive e respira o ar do tempo:
- Havia aquela tontice de todos se acharem únicos, inimitáveis, importantíssimos, excelentes, de modo que só estavam aqui para ditar leis, - recorda Teresa Couto Pinto, que acrescenta: - Na verdade, éramos todos um pouco críticos e com certa intolerância. O António não, embora a seu modo também fosse elitista e seletivo. Costumava dizer: aceito toda a gente, mas isso não significa que tenham de vir todos à minha casa. Ou que tenha de ir beber copos com eles, porque não há paciência para lhes aturar a conversa.
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
O próprio «Chico Fininho» tinha surgido assim, com um desconhecido a cantar acompanhado à guitarra. Segundo António Duarte, «foi a Lena d'Água que me deu uma cassete, na Drogaria Ideal». E acrescentou: «se gostares passa, é de um amigo meu do Porto, chama-se Rui Veloso».
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
Ele não estava bem e não cantou bem, mas o produto final era muito melhor do que ouvíamos habitualmente. Aborreci-me por não poder aplaudir sem reservas. Mas se se mente a um homem sobre o seu talento só porque ele está sentado à nossa frente essa é a mais imperdoável das mentiras, porque isso encoraja-o a continuar, e para um homem sem talento é a pior maneira de lhe destruir a vida. Mas muita gente fazia isso, sobretudo amigos e parentes.
Charles Bukowski – Mulheres (1978) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2003)
Estás aborrecido porque o teu esquema ganhou vida própria. Os teus queridos amigos colocaram-te numa posição delicada, ainda que, em contrapartida, todos sejam capazes de dizer que foste tu que os levaste a isto.
E as acusações seriam justificadas. Winthrop tinha um lado desonesto, que, combinado com o seu dom para a cordialidade, podia resultar em algo parecido com manipulação.
- Essa é a parte complicada. Um homem desculpa-se quando não errou, como gesto educado, e para manter as aparências. Quando errou, a questão torna-se mais complicada.
Em julho e agosto de 1940, quando vinha a Lisboa, Aristides reunia-se com amigos e familiares. Precisava de falar dos acontecimentos. Algumas vezes, encontrou-se com o rabino Kruger, que esperava em Lisboa por um barco que o levasse, e à família, para o novo mundo. O tema principal das conversas era, invariavelmente, a guerra. Kruger, naturalmente, mostrava a sua dor pelo sofrimento causado por Hitler ao povo de Israel, mas ao saber que Aristides enfrentava a raiva de Salazar, terá lamentado: «Tudo o que está a sofrer agora por nossa causa!», e Aristides, que procurava sempre dar-lhe algum consolo por tanto infortúnio, respondeu-lhe: «Se milhares de judeus estão a sofrer por causa de um católico [Hitler], então é compreensível que um católico [Aristides] possa sofrer por causa de tantos judeus. Eu não podia ter agido de outro modo, por isso aceito, com amor, tudo o que me aconteceu e poderá vir a acontecer por causa do meu gesto.»
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)