Em 1989, o quarteirão enfaixado entre a Avenida de Fernão de Magalhães, a Rua Abraços e a Rua da Póvoa abrigava umas quantas pessoas escondidas em prédios do século XIX. Sobreviviam nas cozinhas, nos quartos, nas salas, onde quer que os prédios dessem calor (...)
Nesse Inverno, os buldózeres executaram a ordem de despejo. Os que lá tinham ficado foram acordados pelos operadores que berravam «Fujam, a máquina é cega!». Deram com as paredes destruídas, as camas esmagadas, as molduras das fotografias partidas, conformaram-se e seguiram pelas ruas, uns de roupão, outros de casaco vestido à pressa. Em três dias ninguém se lembrava deles.
O empreiteiro queria construir em tempo recorde por medo de que a Câmara inventasse novas burocracias (...) Depois chegaram as retroescavadoras, que entregaram pazadas de entulho aos reboques dos camiões. E assim cavaram fundações com quinze metros de profundidade protegidas por taipais com placas que avisavam para o óbvio: perigo (...)
Era evidente que a Fernão de Magalhães não merecia o hipermercado pensado para aquele espaço. Veja-se os prédios em volta. Tudo feio, menos os azulejos antigos e o Vila Galé, a torre mais alta da cidade. Dito isto, cuspiam para o chão, concluíam «A vida é assim, o nosso Porto não aprende» (...)
As gruas ainda levantaram um torreão de cinco andares na fachada que dava para a avenida. E então soube-se. Em 1992, as obras pararam por imbróglio jurídico, excesso burocrático, corrupção ou falta de dinheiro, enfim, um dos cenários a que estamos habituados.
Afonso Reis Cabral – Pão de Açúcar Publicações Dom Quixote (2018)
Certo dia perguntei ao senhor Xavier porque lhe chamou Piccolo e ele respondeu que gostava muito do Pinóquio, «Piccolo como tu», e eu fiquei a perceber tanto como antes.
Afonso Reis Cabral – Pão de Açúcar Publicações Dom Quixote (2018)
a luz da cozinha, os tubos fluorescentes de fabricar cegos quase a chegarem aqui juntamente com ruídos de gavetas, talheres, a porta do frigorífico numa espécie de sucção, um prato a bater nos outros ao ser tirado da pilha, uma voz nos antípodas
- Queres ovos mexidos?
os cliques do forno que não acende, acende, se apaga, acende de novo e o assobiozinho do gás, uma torneira aberta, uma torneira fechada, qualquer coisa que se parte
(acho que um pires)
o som de porta de armário e de objectos remexidos à procura do vasculho e da pá, do sapato a carregar na patilha do balde cromado onde se despejam cacos,
António Lobo Antunes – A Última Porta Antes da Noite (2018)
Atirado para um canto. Entre lágrimas, foi dizendo
(E tem doze anos) que seu amigo decidira que deviam
Esperar. Sua mensagem: «Só o amor verdadeiro está
Por vir». É ténue a diferença (pensei) entre um galã
E um filósofo. Mas ela, sobretudo, descobrira que os
Novos instrumentos «mordem» tanto como os antigos,
Salvo que muito mais depressa. A mentira vende. Para
A publicidade, na nova comunicação é impossível a má
Notícia. Por que não trocam com os jornais?
Maria Gabriela Llansol - O Começo de Um Livro É Precioso Assírio & Alvim (outubro 2003)
sonhei aos vinte anos durante três avé-marias que eu tinha-me roubado a minha vida depois de treler o monte dos vendavais decidi ir contra a futilidade do romance
fui apanhado aos vinte e dois anos em plena capicua inocente e rua em amantíssima posse viral
a verdade apanha-se com enganos
aos vinte e três outonos apaixonei-me doze vezes e nem sempre pelas mesmas almas mas sobrevivi a um coração míope