palavra a existências demasiado ocupadas em existir
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Declara-se indignado por alguém poder fazer uso indevido do meu nome, e pronto a ajudar-me a acabar com a fraude, mas acrescenta que afinal de contas não há motivo para me escandalizar, porque na sua opinião a literatura só é válida pelo seu poder de mistificação, tem na mistificação a sua verdade; portanto uma falsificação, enquanto mistificação de uma mistificação, equivale a uma verdade elevada à segunda potência.
Continuou a expor-me as suas teorias, segundo as quais o autor de cada livro é uma personagem fictícia que o autor existente inventa para a tornar o autor das suas ficções. Muitas das suas afirmações até as compartilho, mas evitei dar-lho a entender. Diz que se interessa por mim sobretudo por duas razões: primeiro, porque sou um autor falsificável; segundo, porque pensa que tenho os dotes necessários para ser um grande falsificador, para criar apócrifos perfeitos. Poderei pois encarnar o que para ele é o autor ideal, ou seja, o autor que se dissolve na nuvem de ficções recobre o mundo com o seu espesso invólucro. E como o artifício para ele é a verdadeira substância de tudo, o autor que inventar um sistema de artifícios perfeito conseguirá identificar-se com o todo. (...)
Pensando bem, este escritor total poderia ser uma pessoa muito modesta: o que na América se chama o ghost-writer, o escritor fantasma, uma profissão de reconhecida utilidade embora não de muito prestígio: o anónimo redactor que dá forma de livro ao que têm para contar outras pessoas que não sabem ou não têm tempo para escrever, a mão escrevedora que dá a palavra a existências demasiado ocupadas em existir. Se calhar a minha verdadeira vocação era essa e falhei-a. Podia ter multiplicado os meus eus, anexar eus alheios, fingir os eus mais opostos a mim e mais opostos entre si.
Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)