mas as mães
A chegada de um pequeno destacamento de SS alemães deveria ter levantado dúvidas até mesmo nos optimistas; todavia, conseguimos interpretar de diferentes formas esta novidade, sem tirar a mais óbvia das consequências (...) O comissário italiano, portanto, deu ordem para que todos os serviços continuassem a funcionar até ao anúncio definitivo; a cozinha continuou, pois, em actividade, os faxinas da limpeza trabalharam como de costume, e até os professores da pequena escola deram aulas à tarde, como todos os dias. Mas as crianças naquela tarde não tiveram trabalhos para casa.
Caiu a noite, uma noite tal que se percebeu que olhos humanos não a poderiam presenciar e sobreviver. Todos o sentiram: nenhum dos guardas, nem italianos nem alemães, teve a coragem de ir ver o que é que faziam os homens quando sabiam que iam morrer.
Cada um despediu-se da vida da forma que lhe era mais própria. Alguns rezaram, ouros beberam além do normal, outros inebriaram-se com a última nefanda paixão. Mas as mães ficaram acordadas para preparar com amoroso cuidado a comida para a viagem, e lavaram os filhos, e fizeram as malas, e de madrugada os arames farpados estavam cheios de roupas de crianças estendidas a secar ao vento; e não se esqueceram das fraldas, dos brinquedos, das almofadas e das cem pequenas coisas que elas bem conhecem, e das quais os filhos sempre precisam. Não fariam também o mesmo? Se amanhã esperassem ser mortos com o vosso filho, não lhe davam hoje de comer?
Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)