espalhem a estória
" Os jacalupis eram praticamente incapazes de arranjar comida para si próprios. Primeiro eram os pais que tinham de subir às árvores a colher frutas para eles. Mais tarde, quando os jacalupis cresceram em tamanho e em número, foi preciso que todos os lupis recolhessem as frutas e deixassem uma parte para eles. Mas os jacalupis, com o tempo, iam ficando cada vez mais agressivos e exigentes. Bastava uma banana estar ligeiramente amassada para a recusarem. E ameaçavam os próprios pais lupis."
" No fundo, os jacalupis só ameaçavam e insultavam. (...) Os jacalupis adormeciam ao sol e como tinham memória de jacaré, quando acordavam já tinham esquecido o mambo e tinham masé fome. A comida abundava e por isso os problemas não se agravavam. (...)
Quando os primeiros jacalupis chegaram à idade de casar, aumentaram os problemas. Nenhum dos outros queria casar com um jacalupi, fosse macho ou fêmea.
- O quê? - protestava uma cambutinha - Para ser espremida por aquele jacabruto? E passar o dia todo a ouvir exigências de comida, comida... Nem morta! (...)
Coisa diferente das outras qualidades acontecia também com os casais de jacalupis. Só tinham filhos jacalupis. E raramente. Como os pais eram incapazes de arranjar comida para si próprios, também não o fariam para os filhos. O conjunto dos lupis tinha pois esse encargo. Felizmente os jacalupis eram poucos e não se reproduziam muito, senão...
- Já viram o que seria da nossa sociedade? - dizia o lupi-pensador para os amigos. - Seríamos escravos deles, a ter de fazer todo o trabalho que eles desconseguem."
" ... é sabido que os poetas são os seres mais irritáveis quando os resultados lhes não agradam."
" Os lupis gostavam muito da prudência e sabedoria do cágado. (...) tinham conversas profundas com ele, a tentar descobrir sentidos escondidos na desordem babélica deste mundo."
" Há um tanque novo, só para vocês. Dentro de dois dias está quase cheio e já podem vir usá-lo.
- São mesmo uns lupis fixes - disse o coelho.
- Mas isto tudo custou trabalho - disse o lupi-advogado. - E o trabalho deve ser recompensado, claro. Portanto, quem quiser vir tomar banho tem de trazer fruta para nós. É correcto, não?
- É correcto, sim - concordou o Kandimba. - Na planície não se faz nada sem ser pago. São novas formas inventadas lá pelos sábios. Anda toda a gente à procura de um nome para isso...
- Podia ser economia de mercado - disse o lupi-comerciante. - Mas para inventar nomes, o lupi mais forte é o poeta.
Este encolheu os ombros, como quem diz essa não é a minha área de interesse."
" Assim, a montanha se foi animando com os clientes que apareceram para tomar banho, carregados de cestas de frutas. Uns traziam mais que outros, mas a quantidade ainda não estava regulamentada. O lupi-comerciante não teve a genialidade para descobrir nome bem apropriado para essas constantes excursões dos bichos para a montanha. E os restantes lupis andavam distraídos com outros interesses. Só essa distracção explica o muito tempo que teve de se esperar até a palavra turismo ser inventada."
" [Aqui é necessária uma explicação que avô Bento não introduzia no relato: a hiena foi escolhida porque ela era muito astuciosa e falsa. Parecia que estava sempre a rir, quando arquitectava malandrices do tamanho de um imbondeiro. E tinha a mania de querer saber tudo o que se passava com os outros, usando agentes e informadores. Foi de facto a hiena o primeiro organizador de serviços secretos, embora os historiadores neguem essa evidência.]"
" O argumento era convincente para quem só apreciava a razão da força."
" - Atulhem as cabaças todas, mas vamos vender só às metades - recomendou o lupi-comerciante. - Eles refilam mas aceitam na mesma e ganhamos mais. Até porque o costume faz a lei. Lupi-advogado, prepara os argumentos."
" No entanto, havia uma mudança operada nos jacalupis, possivelmente por acção da água lilás: começaram a ter mais filhos, os quais cresciam mais depressa que os pais. Sempre jacalupis. E o apetite deles tinha aumentado. Não só o apetite de devorar comida, também o apetite de ter coisas.
Um dia, o lagarto azul trouxe uns ossos roídos ao jacalupi-capitão.
- Isto agora é a grande moda na planície, foram os javalis que inventaram. Põe esses ossos nas orelhas.
Os jacalupis ficaram tão entusiasmados que obrigaram o lupi-comerciante a trocar água lilás também por ossos roídos. Todos os jacalupis passaram a usar ossos nas orelhas, depois pendurados no nariz. O lupi-comerciante achava ridículo, mas não se importava. Assim, os jacalupis andavam satisfeitos com ele e podia fazer outros negócios. (...) Como os lupis não tinham cauda e os jacalupis sempre invejaram as belas caudas dos macacos, amarraram os ossos a barbas de mulemba e fizeram caudas de ossos que levavam a arrastar pelo chão, todos vaidosos. Aos lupis que os gozavam, eles diziam, cheios de empáfia:
- Ignorantes, jac-jac-jac! Não seguem a última moda da planície.
Mais tarde o lagarto azul, que era um grande espertalhão, veio com penas de pavão.
- Um chefe, na planície, tem de ter um distintivo. Um grande chefe, claro.
E o jacalupi-capitão obrigou o lupi-comerciante a comprar penas de pavão. (...)
Os outros jacalupis se conformaram à sua vontade. E foi assim que o jacalupi-capitão, cada vez mais forte e vaidoso, passou a usar os símbolos da sua autoridade. Penas de pavão na cabeça. Assim era muito mais fácil distinguir onde estava o grande chefe dos lupis.
Chefe, claro, só aceite pelos jacalupis. Os outros riam-se da sua estupidez. A excepção era o lupi-comerciante, que os negócios tinham tornado muito manhoso e prudente. (...) Pouco a pouco, os lupões também deixaram de rir.
Estas pequenas transformações inquietavam o lupi-pensador. Um dia levou o lupi-poeta para o alto de uma mafumeira, para conversarem à vontade. (...)
- Engordaram todos. E as partilhas são cada vez mais desiguais."
" ... e os cambutas começaram também a engordar e a ficar mais preguiçosos (...) A paz voltou a reinar na montanha. Menos para o pensador e para o poeta. (...)
- Esses dois são criminosos. Como diz o lupi-eremita, eles ofenderam o lupi-deus. (...)
- Quem não aceita as ordens do jacalupi-chefe ofende o lupi-deus que fala pela boca dele.
A lupi-professora e os outros cambutinhas ficaram muito perturbados. Nunca tinham ouvido falar de um lupi-deus, conceito criado pelos lupões, ao que parece."
" A sabedoria até pode resolver, mas depois os outros utilizam o resultado da sabedoria ao contrário e a coisa vira prejudicial."
" E foi assim que os elefantes beberam um líquido verde-rosa e ficaram insensíveis a todas as armas feitas a partir da água lilás. Desde então nem a podiam cheirar sem ter soluços.
Convocaram reunião geral de todos os bichos. (...) Os elefantes explicaram que também tinham uma arma terrível, que os imunizava das armas deles. Que os outros tivessem juízo. Por fim falou o cágado, tirando as conclusões:
- Fica pois decidido que ninguém pode ousar tomar a fonte de água lilás. Os elefantes são a garantia disso. (...) Os leões mandaram logo a serpente-gingona como emissária para dizer que subscreviam o acordo. As onças miaram de raiva, derrotadas já tão perto da vitória, mas tiveram de aceitar. Os rinocerontes apoiaram também, ainda lembrados do que sofreram na montanha (...)
E assim se chegou á paz armada e contra-armada na planície."
" Com a paz encontrada, parecia a calma ia voltar à montanha, não é?
Nada.
Os lupões engordavam e todos os trabalhos eram feitos apenas pelos cambutas."
" Como as necessidades aumentavam constantemente, pois a população crescia e os jacalupis e lupões cada vez queriam mais coisas da planície, geralmente inutilidades concebidas para eles, o lupi-comerciante e o contabilista trocavam frases preocupadas. Não havia suficiente água lilás para todos esses gastos. Já o jacalupi-capitão mostrava a sua insatisfação pela forma como eles geriam os negócios. Daí à desconfiança era só um passo. O lupi-comerciante foi falar ao lupi-sábio, tens de inventar qualquer coisa.
- Inventar mais o quê? Farto-me de inventar coisas, mas vocês não aproveitam. Só ainda não inventei juízo para vos dar.
- Ora, só inventas coisas disparatadas. Como esse líquido feito a partr de água lilás que dá para fazer colchões. Os hervíboros vendem-nos bons colchões de palha e sumaúma. E os avestruzes vendem-nos as penas que fazem uns colchões maravilhosos. Para que ia servir a tua descoberta de colchões líquidos?
Era verdade. Os lupis agora dormiam sobre fofos colchões comprados na planície. O jacalupi-capitão tinha um enorme de penas de avestruz. Caríssimo, o preço de três dias de água lilás.
- Ficava muito mais barato utilizar o meu líquido.
O lupi-comerciante muxoxou e nem lhe respondeu."
" O lupi-pensador e o poeta juntaram-se aos outros, à espera de começar a reunião. (...) Finalmente apareceu o lupi-diplomata a dizer que o jacalupi-capitão não autorizava a reunião.
- Vai lá dizer-lhes que acabou esse costume atrasado de se discutir para tudo e para nada. Quem manda agora sou eu. (...)
Os cambutas protestaram. Que as grandes decisões deviam ser colectivas, como até aí. Mas o jacalupi-capitão mandou o grupo de vigilância dispersar o grupo, porque as reuniões estavam proibidas, eram subversivas."
" - Então, viram no que deu a vossa fraqueza? Aceitaram, aceitaram, agora já nem têm direito de dizer qual é a vossa vontade. É preciso não aceitar, é preciso lutar.
Os outros ouviram um pouco envergonhados, mas queriam sobretudo paz e calma. (...)
- Assim está-se bem. O jacalupi-capitão agora decide sozinho com o lupi-comerciante. Mas não decide mal. Nós queríamos a reunião, no fundo, no fundo, por uma questão de hábito. Mas novos tempos, novos hábitos. (...)
- Ingénuos! - Gritou o lupi-pensador. - Ficaram uns moles (...) Vocês não compreendem? A água lilás é um bem que é preciso saber utilizar. Com ela podíamos fazer muitas coisas que o lupi-sábio inventou. E gastá-la correctamente. Mas os jacalupis não querem, porque dá trabalho.(...)
Qualquer dia vão vender-nos os colchões com o líquido que o lupi-sábio inventou. E vamos comprar aquilo que podemos fazer sozinhos."
" Quando os lupis estavam todos juntos a cavar o furo da água lilás, os dois amigos tentavam convence-los:
- Só estão a engordar os jacalupis, mais nada. E eles vão aumentar a opressão.
O lupi-poeta declamava poemas em que gozava a estupidez dos jacalupis e a cobiça dos que jacalupizavam. Até que o jacalupi-capitão soube dos discursos que os dois andavam a fazer por todos os lados da montanha.
Ficou muito ofendido. Furisoso, declarou:
- Acabou a amnistia. Esses agitadores perigosos (...) São castigados com o exílio perpétuo. Nunca mais podem pôr o pé no chão."
" Cada vez mais irritado com a lupilagem atrevida, que colocava em rídiculo todas as medidas que tomava, o jacalupi-capitão passou a pressionar o lupi-sábio para inventar uma arma contra eles. Mas o sábio resistia. Atrasava, atrasava, ainda não consegui, é mais difícil do que pensa (...)
- É a coisa mais fácil do mundo inventar a tal arma. Mas não posso fazer isso contra os nossos. E o jacalupi-capitão vai ter a certeza que não quero inventá-la e então vou ser castigado. Porque não se calam de uma vez e voltam a ter uma amnistia? Assim desconseguem de convencer alguém. (...) Os dois amigos diziam não iam calar, os lupis tanto ouviriam que acabavam por entender. Nós podemos libertar-nos todos se ficarmos juntos, nós é que temos de facto a força, repetiam. Mas os cambutinhas não compreendiam ou não queriam compreender. "
" Um dia acordaram com uma notícia horrível. A água lilás parou de sair dos dois furos. Nem uma gota. (...)
A fome apertou. Os lupis já não sabiam subir às arvores para colher a fruta que estava lá em cima. (...)
Os leões e as onças, furiosos por não terem mais água, agora que tinham feito grandes progressos na descoberta de aplicações miraculosas, avançaram pela montanha, porque pensavam que aquilo era um truque dos lupis para aumentarem os preços. O cágado, avisado da calamidade acontecida na montanha, teve de intervir com os elefantes:
- Ninguém faz mal aos nossos amigos em desgraça. Ficou combinado que ninguém ia invadir a montanha. Com água lilás ou sem água lilás.
Os carnívoros acabaram por recuar e não fizeram mal aos lupis. Mas com oestes já não tinham nada para comer e na montanha só havia fruta em cima das árvores, agora inacessíveis, tiveram de se espalhar pela planície. Os dois amigos ainda tentaram manter os cambutas na montanha.
- Fiquem, que nós atiramos as frutas para baixo. Até reaprenderem a subir às árvores.
Mas os outros, dobrados pela desgraça colectiva, nem os ouviram. Ou foi vergonha? Ou por não quererem ficar dependentes dos dois que eles no fundo ajudaram a exilar? Não se sabe. O certo é que foram com os lupões e os jacalupis para a planície.
Para comer, os lupis alugaram-se aos carnívoros e grandes hervíboros. O jacalupi-capitão passou a servir de tambor nas feiras, porque ele tinha uma grande bunda onde as onças batiam, marcando o rítimo das danças. Outros serviam de palhaços, com as caudas de ossos a arrastar. O lupi-sábio e os seus adjuntos ficaram escravos das cobras, inventando coisas para elas. O lupi-comerciante era escravo dos hipopótamos, para fazer trocas com os jacarés, os quais o mordiam quando não gostavam do negócio. Todos os outros se alugaram para trabalhos que os bichos da planície recusavam fazer. "
" O lupi-pensador e o lupi-poeta continuaram na montanha, comendo as frutas das árvores. (...) Tinham agora uma vida livre pela montanha, como nos velhos tempos, mas tinham saudades dos outros lupis. Tinham sobretudo pena deles, escravos de si próprios. "
" O lupi-pensador (...) Disse:
- Lupi-poeta, tens que contar tudo isso que passou. Para que os lupis não se esqueçam dos seus erros.
O lupi-poeta fez então muitos poemas. (...) para transmitirmos às gerações vindouras.
Aprenderão eles com a estória? "
Pepetela - A Montanha da Água Lilás
Fábula para todas as idades (2000)
Leya, BIS