dissolução
E todas as quartas-feiras a donzela perfumada me dá uma nota de cem coroas para que a deixe a sós com o recluso. E à quinta as cem coroas já marcharam em cerveja que nunca mais acaba. E quando chega ao fim a hora da visita a donzela sai com o fedor da cadeia nos seus vestidos elegantes; e o recluso torna para a cela com o perfume da donzela na sua roupa de condenado. E eu fico com o cheiro da cerveja. A vida não passa de uma troca de cheiros.
- A vida e a morte, podes dizê-lo - respondeu outro bêbedo, cuja profissão, como fiquei logo a saber, era coveiro. - Eu com o cheiro da cerveja tento tirar o cheiro a morto. E só o cheiro a morto te tira de cima o cheiro a cerveja, como a todos os bebedores a que tenho de abrir a cova.
Interpretei este diálogo como um aviso para me pôr em guarda: o mundo está a desfazer-se e tenta atrair-me para a sua dissolução.
Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)