dias a sim
a crítica (...) expressa numa ausência de elogios
há pessoas que necessitam de um baloiço para o raciocínio
sempre me fizeram sonhar os comboios
me esqueci da professora mas as vírgulas ficaram, vírgula, segundo ela eram sempre úteis mesmo ao conversar
- Com uma pausazinha na altura certa fica tudo mais claro
muito se morre em Portugal de facto
o avô do meu marido a abrir a tampa do relógio do colete
- Nove horas
e a fechá-la num estalinho que lhe agradava, se lho emprestasse abria e fechava-o duzentas vezes porque lhe apetecia comer aquele som
apesar de estarmos no outono e uma chuvinha parva, dessa que não molha nem se sente, nos convida ao suicídio apenas, a vizinha triste, a minha mãe triste por contágio que a infelicidade pega-se
o som do pêndulo do relógio da sala, de dia quase mudo e à noite enorme porque no escuro tudo aumenta
não se falavam há anos que o tempo separa as pessoas e depois o esquecimento começa o seu trabalho
- Tenho cinquenta e nove anos caramba
tombaram-lhe como tijolos os cinquenta e nove anos em cima
até um grilo uma tarde na bancada que expulsei com um piparote para o quintal onde mais tarde ou mais cedo uma lagartixa o arrastaria por uma das patas na direcção de uma falha de muro, tudo come tudo neste mundo, é assim, até o mar devagarinho vai comendo os penedos, a nós come-nos a idade
por ser vasta era mais paciente, sempre nervosas, as magras
porque na vida não existem certezas e até Deus muda de humor
as pessoas são tantas dentro das pessoas que são
adivinhava que me miravam porque um peso em mim, sentimos sempre um peso quando nos olham
espanta-me que haja pessoas ingénuas capazes de acreditarem nas mentiras das ondas
há coisas que nos agradam ao princípio e o tempo torna sinistras
que pena as pessoas não se aceitarem como são
e eu calada a engolir-me a mim mesma, como é complicado engolirmo-nos a nós mesmos
derivado ao sol, levo esta luz, esta felicidade, esta paz (...) até nos dissolvermos na luz
António Lobo Antunes – Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera (2016)
Publicações D. Quixote | Leya (2016)